sexta-feira, 18 de maio de 2012

barthes

A MENSAGEM FOTOGRÁFICA*

 

Roland Barthes

 

 

 

A fotografia de imprensa é uma mensagem. O conjunto desta mensagem é constituído por uma fonte emissora, um canal de transmissão e um meio receptor. A fonte emissora é constituída pela redacção do jornal, o grupo dos técnicos dos quais alguns tiram a fotografia, outros escolhem-na, compõem-na, tratam-na, e finalmente outros lhe dão um título, a legendam e comentam. O meio receptor é o público que lê o jornal. E o canal de transmissão é o próprio jornal, ou, mais exactamente, um complexo de mensagens concorrentes, das quais a fotografia é o centro, mas cujos contornos são constituídos pelo texto, pelo título, pela legenda, pela paginação e, de uma forma mais abstracta mas não menos «informante», pelo nome do jornal (porque este nome constitui um saber que pode inflectir fortemente a leitura da mensagem propriamente dita: uma fotografia pode mudar o seu sentido passando do Aurore para o L’Humanité). Estas constatações não são indiferentes, dado que vemos bem que aqui as três partes tradicionais da mensagem não convocam o mesmo método de exploração; a emissão e a recepção da mensagem relevam totalmente de uma sociologia: trata-se de estudar os grupos humanos, de definir os motivos, as atitudes, e ensaiar uma forma de ligar comportamentos destes grupos à sociedade no seu todo do qual eles fazem parte. Mas para a mensagem em si mesma, o método tem de ser diferente: quaisquer que sejam a origem e o destino da mensagem, a fotografia não é apenas um produto ou uma via; é também um objecto, e como tal dotado de uma autonomia estrutural; sem pretender de forma alguma apartar este objecto do seu uso, é necessário prever aqui um método particular, anterior à análise sociológica em si mesma, e que não pode ser senão a análise imanente desta estrutura original que é uma fotografia.

Naturalmente, mesmo tendo em vista uma análise puramente imanente, a estrutura da fotografia não é uma estrutura isolada; ela comunica pelo menos com uma outra, que é o texto (título, legenda ou artigo) de que qualquer fotografia de imprensa vem acompanhada. A totalidade da informação é portanto suportada por duas estruturas diferentes (das quais uma é linguística); estas duas estruturas são concorrentes, mas como as suas unidades são heterogéneas, não podem misturar-se; aqui (no texto), a substância da mensagem é constituída por palavras; lá (na fotografia), por linhas, superfícies, tons. Além disso, as duas estruturas da mensagem ocupam espaços reservados, contíguos, mas não «homogeneizados», como por exemplo num jogo em que se fundem numa única linha palavras e imagens. Também, apesar de não haverem fotografias de imprensa sem comentário escrito, a análise deve incidir, em primeiro lugar, sobre cada uma das estruturas separadamente; não é senão quando tivermos esgotado o estudo de cada estrutura que poderemos compreender o modo como elas se completam. Nestas estruturas, uma é já conhecida, a da língua (mas não é, na verdade, a da «literatura» aquela que constitui a palavra do jornal: fica ainda sobre este ponto muito trabalho para fazer); o outro, o da fotografia propriamente dita, é mais ou menos desconhecido. Limitar-nos-emos aqui a definir as primeiras dificuldades de uma análise estrutural da mensagem fotográfica.

 

 

O paradoxo fotográfico.

 

Qual o conteúdo da mensagem fotográfica? O que é que a fotografia transmite? Por definição, a própria cena, o real literal. Do objecto à sua imagem há, certamente, uma redução: de proporção, de perspectiva e de cor. Mas esta redução não é em momento algum uma transformação (no sentido matemático do termo); para passar do real à sua fotografia, não é absolutamente necessário decompor esse real em unidades e tornar essas unidades em signos substancialmente diferentes do objecto que é mostrado; entre esse objecto e a sua imagem, não é de modo nenhum necessário usar um dispositivo, isto é, um código; certamente a imagem não é o real, mas é pelo menos o seu analogon perfeito; e é precisamente por essa perfeição analógica que o senso comum define a fotografia. O estatuto particular da imagem fotográfica aparece-nos assim como uma mensagem sem código; desta proposição resulta imediatamente um corolário importante: a mensagem fotográfica é uma mensagem contínua.

Será que existem outras mensagens sem código? À primeira vista, sim: são precisamente todas as representações analógicas da realidade: o desenho, a pintura, o cinema e o teatro. Todavia, cada uma dessas mensagens desenvolve de um modo imediato e evidente, além do próprio conteúdo analógico (cena, objecto, paisagem), uma mensagem suplementar, aquilo que se designa normalmente por estilo da reprodução; trata-se dum segundo sentido, cujo significante é um certo «tratamento» da imagem pelo seu criador, e cujo significado, estético ou ideológico, remete para uma certa cultura da sociedade a da mensagem. Em resumo, todas estas artes imitativascomportam duas mensagens: uma mensagem denotada, o próprio analogon, e uma mensagem conotada, maneira de que se serve a sociedade para mostrar, numa certa medida, o que ela pensa. Esta dualidade de mensagens é evidente em todas as reproduções não fotográficas: não existe um desenho, por mais exacto que seja, cuja própria exactidão não se torne um estilo («verista»); não há cena filmada, cuja objectividade não seja lida como o próprio signo da objectividade. Mesmo aqui, está ainda por fazer o estudo dessas imagens conotadas (torna-se necessário decidir se o que se chama de obra de arte se pode reduzir a um sistema de significados); o que contudo se pode prever é que em todas estas artes imitativas, quando semelhantes, o código do sistema conotado é possivelmente constituído seja por um simbolismo universal seja por uma retórica de época: em resumo, por uma reserva de estereótipos (esquemas, cores, grafismos, gestos, expressões, grupos de elementos).

Ora, em princípio nada disso se aplica à fotografia, pelo menos à fotografia de imprensa, que nunca é uma fotografia «artística». Tomando-se a fotografia como analogia mecânica do real, a sua primeira mensagem enche, de certa maneira, completamente a sua substância e não deixa nenhum lugar para o desenvolvimento de uma segunda mensagem. Em suma, de todas as estruturas de informação, a fotografia seria a única exclusivamente constituída e ocupada por uma mensagem «denotada», que esgotaria completamente o seu ser; face a uma fotografia, o sentimento de «denotação», ou, se se preferir, de plenitude analógica, é tão forte que a descrição de uma fotografia se torna literalmente impossível, uma vez que «descrever» consiste precisamente em juntar à mensagem denotada um dispositivo ou uma segunda mensagem, tirada de um código que é a língua, e que constitui fatalmente, por muito cuidado que se tenha para ser exacto, uma conotação em relação ao análogo fotográfico. Não que se trate, ao descrever, de ser somente inexacto ou incompleto; é mudar de estrutura, é significar outra coisa que não aquilo que é mostrado. Ora, esse estatuto puramente «denotante» da fotografia, a perfeição e a plenitude da sua analogia, em suma a sua «objectividade», tudo isso corre o risco de se tornar mítico (são essas as características que o senso comum encontra na fotografia), dado que, com efeito, há uma forte probabilidade (e isso seria uma hipótese de trabalho) para que a mensagem fotográfica (pelo menos a mensagem da imprensa) seja também ela conotada. A conotação não se deixa necessariamente captar de imediato ao nível da própria mensagem (ela é, se se quiser, ao mesmo tempo invisível e activa, clara e implícita), mas já se podem daí induzir certos fenómenos que ocorrem ao nível da produção e da recepção da mensagem: por um lado, uma fotografia de imprensa é um objecto trabalhado, escolhido, composto, construído, tratado segundo as normas profissionais, estéticas ou ideológicas, que são também factores de conotação; e, por outro lado, essa mesma fotografia não é somente apreendida, recebida; ela é lida, ligada mais ou menos conscientemente, pelo público que a consome, a uma reserva tradicional de signos. Ora, qualquer signo pressupõe um código, e é esse código (de conotação) que é necessário tentar estabelecer. O paradoxo fotográfico estaria então na coexistência de duas mensagens, uma sem código (que seria a analogia fotográfica), e outra com código (que seria a «arte», ou o tratamento, ou a «escritura», ou a retórica da fotografia). Estruturalmente, o paradoxo não é evidentemente a colisão de uma mensagem denotada e de uma mensagem conotada: aqui temos o estatuto provavelmente fatal de todas as comunicações de massa; é que a mensagem conotada (ou codificada) se desenvolve aqui a partir de uma mensagem sem código. Este paradoxo estrutural coincide com um paradoxo ético: quando queremos ser «neutros, objectivos», esforçamo-nos por copiar minuciosamente o real, como se a analogia fosse um factor de resistência ao investimento dos valores (esta é pelo menos a definição do «realismo» estético): como é que a fotografia pode então, ao mesmo tempo, ser «objectiva» e «investida», natural e cultural? Quando se esclarecer o modo de imbricação da mensagem denotada e da mensagem conotada será então possível responder a essa questão. Mas para tentar fazer esse trabalho torna-se necessário não esquecer que, na fotografia, a mensagem denotada, sendo absolutamente analógica — isto é, privada de qualquer recurso a um código —, é ainda contínua, não existindo maneira de procurar as unidades significantes da primeira mensagem; pelo contrário, a mensagem conotada permite facilmente um plano de expressão e um plano de conteúdo, significantes e significados: obriga por isso a uma verdadeira decifração. Essa decifração seria actualmente prematura, porque para isolar as unidades significantes e os temas (ou valores) significados, seria necessário proceder (talvez por testes) a leituras dirigidas, fazendo variar artificialmente certos elementos da fotografia para poder observar como as variações da forma desencadeiam variações de sentido. Pelo menos por agora, podemos prever os principais planos de análise da conotação fotográfica.

 

 

Os processos de conotação.

 

A conotação, isto é, a imposição de um segundo sentido à mensagem fotográfica propriamente dita, é elaborada nos diferentes níveis da produção da fotografia (escolha, tratamento técnico, enquadramento, mise en page): trata-se, em resumo, de uma codificação da analogia fotográfica, tornando-se, por isso, possível isolar os processos de conotação; mas esses processos, é bom recordar, nada têm a ver com as unidades de significação, como uma análise do tipo semântico permitirá talvez um dia estabelecer; não fazem parte, a bem dizer, da estrutura fotográfica. Uma vez que os processos são conhecidos limitar-nos-emos a traduzi-los em termos estruturais. Em rigor, seria necessário separar os três primeiros (trucagem, pose, objectos) dos três últimos (fotogenia, estetismo, sintaxe), porque nos três primeiros processos a conotação é produzida por uma modificação do próprio real, isto é, duma mensagem denotada (este aparelho não pertence evidentemente à fotografia); se contudo os incluímos nos processos de conotação fotográfica é porque também beneficiam do prestígio da denotação: a fotografia permite que o fotógrafo se esquive à preparação que ele faz da cena que vai captar; o que não significa, do ponto de vista de uma análise estrutural ulterior, que com segurança seja possível validar esse material.

 

1. Trucagem.

 

Em 1951, uma fotografia largamente difundida na imprensa americana custou o lugar, segundo se disse, ao senador Millard Tydings; esta fotografia representava o senador conversando com o líder comunista Earl Browder. Tratava-se, com efeito, de uma fotografia trucada, constituída por uma aproximação artificial das duas caras. O interesse metódico da trucagem reside na sua intervenção no interior do próprio plano da denotação, sem que disso sejamos prevenidos; ela utiliza a credibilidade particular da fotografia, que tem, como vimos, um poder excepcional de denotação, para fazer passar como simplesmente denotada uma mensagem que é de facto fortemente conotada; em nenhum outro tratamento a conotação se torna de modo tão completo a máscara «objectiva» da denotação. Naturalmente, a significação só é possível na medida em que há uma reserva de signos, um esboço de código; aqui, o significante é a atitude de conversação das duas personagens; note-se que essa atitude só se torna signo para uma certa sociedade, isto é, somente ao abrigo de certos valores; é o anticomunismo orgulhoso do eleitorado americano aquilo que faz do gesto dos interlocutores o signo de uma familiaridade repreensível, isto é, o código de conotação não é nem artificial (como numa língua verdadeira) nem natural: é histórico.

 

2. Pose.

 

Tomemos uma fotografia de imprensa largamente difundida nas últimas eleições americanas: o busto do presidente Kennedy, visto de perfil, com os olhos no céu, de mãos postas. Aqui, é a própria pose do sujeito que prepara a leitura dos significados da conotação: juventude, espiritualidade, pureza; evidentemente, a fotografia só é significante porque existe uma reserva de atitudes estereotipadas que constituem os elementos já feitos de significação (olhar o céu, mãos postas); uma «gramática histórica» da conotação iconográfica deveria, pois, procurar os seus materiais na pintura, no teatro, nas associações de ideias, nas metáforas correntes, etc., isto é, precisamente na «cultura». Como dissemos, a pose não é um processo especificamente fotográfico, mas é difícil não nos referirmos a ela, na medida em que alcança o seu efeito graças ao princípio analógico que está na base da fotografia: a mensagem não é aqui «a pose», e sim «Kennedy a orar»; o leitor recebe como uma simples denotação aquilo que, na verdade, é uma estrutura dupla, denotada-conotada.

 

3. Objectos.

 

É preciso reconhecer a importância daquilo a que se poderia chamar a pose dos objectos, visto que o sentido conotado surge então dos objectos fotografados (quer se tenha disposto artificialmente estes objectos em frente da objectiva, se o fotógrafo esteve para isso, quer o paginador tenha escolhido, entre várias fotografias, uma certa deste ou daquele objecto). O interesse reside no facto de estes objectos serem indutores correntes de associações de ideias (biblioteca = intelectual), ou, de um modo mais obscuro, de autênticos símbolos (a porta da câmara de gás de Chessmann remete para a porta fúnebre das antigas mitologias). Estes objectos constituem excelentes elementos de significação; por um lado, são descontínuos e completos em si mesmos, o que é para um signo uma qualidade física; e, por outro, remetem para significados claros, conhecidos: são, pois, elementos de um verdadeiro léxico, de tal modo estáveis que facilmente os poderemos constituir em sintaxe. Vejamos, por exemplo, uma composição de objectos: uma janela aberta para telhados de telha, uma paisagem de vinhedos; em frente da janela, um álbum de fotografias, uma lupa, um vaso de flores; estamos, pois, no campo, no Sul do Loire (vinhas e telhas), numa moradia burguesa (flores em cima da mesa), cujo hóspede de certa idade (lupa) revive as suas recordações (álbum de fotografias); é François Mauriac em Malagar (no Paris-Match); a conotação «sai» mais ou menos de todas estas unidades significantes, mas «captadas» como se tratasse de uma cena imediata e espontânea, isto é, insignificante; encontramo-la explicitada no texto, que desenvolve o tema das raízes telúricas de Mauriac. O objecto talvez já não possua uma força, mas possui seguramente um sentido.

 

4. Fotogenia.

 

Foi já feita a teoria da fotogenia (Edgar Morin em O Cinema ou o Homem Imaginário), e não é esta a ocasião de nos debruçarmos sobre a significação geral deste processo. Bastará definir a fotogenia enquanto estrutura informativa: na fotogenia, a mensagem conotada existe na própria imagem, captada «embelezada» (isto é, em geral sublimada) por técnicas de iluminação, de impressão e de tiragem. Dever-se-iam inventariar estas técnicas, mesmo que fosse apenas pelo facto de a cada uma corresponder um significado de conotação suficientemente constante para ser incorporada num léxico cultural dos «efeitos» técnicos (por exemplo, o flou de movimento ou file, lançado pela equipa do Dr. Steinert par significar o espaço-tempo). Aliás, este inventário seria um meio excelente para distinguir os efeitos estéticos dos efeitos significantes, salvo para reconhecer talvez que em fotografia, contrariamente às intenções dos fotógrafos de exposição, nunca há arte, mas sempre sentido — o que precisamente oporia finalmente segundo um critério preciso a boa pintura, mesmo que fortemente figurativa, à fotografia.

 

5. Esteticismo.

 

Isto porque se podemos falar de esteticismo em fotografia, é, parece, de uma maneira ambígua: sempre que a fotografia se faz pintura, isto é, composição ou substância visual deliberadamente tratada «na paleta», é ou para se significar a ela própria como «arte» (é o caso do «picturalismo» do princípio do século) ou para se impor um significado geralmente mais subtil e mais complexo do que o permitiriam outros processos de conotação; Cartier-Bresson construiu assim a recepção do cardeal Pacelli pelos fiéis de Lisieux como um quadro de um velho mestre, mas esta fotografia não é de modo nenhum um quadro; por um lado, o esteticismo ostentado remete (maliciosamente) para a própria ideia de quadro (o que é contrário a toda a pintura autêntica) e, por outro, a composição significa aqui, de um modo declarado, uma certa espiritualidade extática, traduzida precisamente enquanto espectáculo objectivo. Aliás, vemos aqui a diferença entre a fotografia e a pintura: no quadro de um Primitivo, a «espiritualidade» não é de modo nenhum um significado, mas, se assim se pode dizer, o próprio ser da imagem; com efeito, pode haver em certas pinturas elementos de código, figuras de retórica, símbolos de época; mas nenhuma unidade significante remete para a espiritualidade, que é uma maneira de ser, não o objecto de uma mensagem estruturada.

 

6. Sintaxe.

 

Já falámos aqui de uma leitura discursiva de objectos-signos no interior de uma mesma fotografia; naturalmente, várias fotografias podem constituir-se em sequência (é o caso corrente nas revistas ilustradas); o significante de conotação já não se encontra então ao nível de nenhum dos fragmentos da sequência, mas no nível (supra-segmental, diriam os linguistas) do encadeamento. Vejamos quatro instantâneos de uma caçada presidencial em Rambouillet: em cada tiro o ilustre caçador (Vicent Auriol) aponta a espingarda para uma direcção imprevista, com grande perigo para os guardas que fogem ou se lançam por terra: a sequência (e só a sequência) dá a ler um efeito cómico, que surge, segundo um processo bem conhecido, da repetição e da variação das atitudes. A propósito disto, é preciso notar que a fotografia solitária muito raramente (isto é, muito dificilmente) é cómica, contrariamente ao desenho; o cómico tem necessidade de movimento, isto é, de repetição (o que é fácil no cinema), ou de tipificação (o que é possível no desenho), estando estas duas «conotações» interditas à fotografia.

 

 

O texto e a imagem.

 

São estes os principais processos de conotação da imagem fotográfica (uma vez mais, trata-se de técnicas, não de unidades). Podemos acrescentar-lhes, de um modo constante, o próprio texto que acompanha a fotografia de imprensa. Aqui, é preciso fazer três observações.

Em primeiro lugar, esta: o texto constitui uma mensagem parasita, destinada a conotar a imagem, isto é, a «insuflar-lhe» um ou vários significados segundos. Por outras palavras, e é uma inversão histórica importante, a imagem já não ilustra a palavra; é a palavra que, estruturalmente, é parasita da imagem. Esta inversão tem o seu preço: nos modos tradicionais de «ilustração», a imagem funcionava como um regresso episódico à denotação a partir de uma mensagem principal (o texto) que era sentido como conotado, visto que, precisamente, ele tinha necessidade de uma ilustração; na relação actual, a imagem não vem esclarecer ou «realizar» a palavra: é a palavra que vem sublimar, patetizar ou racionalizar a imagem. Mas como esta operação se faz a título acessório, o novo conjunto afirmativo parece principalmente fundado numa mensagem objectiva (denotada), cuja palavra não é senão uma espécie de vibração segunda, quase inconsequente; antigamente, a imagem ilustrava o texto (tornava-o mais claro); hoje, o texto sobrecarrega a imagem, confere-lhe uma cultura, uma moral, uma imaginação; antigamente, havia redução do texto à imagem, hoje há amplificação da imagem ao texto: a conotação já não é vivida senão como ressonância natural da denotação fundamental constituída pela analogia fotográfica. Estamos, pois, perante um processo caracterizado como naturalização do cultural.

Outra observação: o efeito de conotação é provavelmente diferente consoante o modo de apresentação da palavra; quanto mais a palavra está próxima da imagem, menos parece conotá-la; captada, por assim dizer, pela mensagem iconográfica, a mensagem verbal parece participar na sua objectividade, a conotação da linguagem «torna-se inocente» através da denotação da fotografia; é verdade que não há nunca uma verdadeira incorporação, visto que as substâncias das duas estruturas (aqui gráfica, ali icónica) são irredutíveis; mas há provavelmente graus na amálgama; a legenda tem provavelmente um efeito de conotação menos evidente do que o título ou o artigo; título e artigo separam-se sensivelmente da imagem, o título pela grafia, o artigo pela distância, um porque rompe, o outro porque afasta o conteúdo da imagem; pelo contrário, a legenda, pela sua própria disposição, pela sua medida média de leitura, parece duplicar a imagem, isto é, participar na sua denotação.

Contudo, é impossível (e esta será a última observação a propósito do texto) que a palavra «duplique» a imagem, pois na passagem de uma estrutura a outra elaboram-se fatalmente significados segundos. Qual é a relação destes significados de conotação com a imagem? Trata-se, aparentemente, de uma explicitação, isto é, em certa medida, de uma ênfase, com efeito junto de conotações já incluídas na fotografia; mas, por vezes, também o texto produz (inventa) um significado inteiramente novo e que é de certo modo projectado retroactivamente na imagem, a ponto de parecer denotado: «Viram a morte, prova-o a expressão do rosto», diz o título de uma fotografia onde se vê a rainha Isabel e o príncipe Filipe descer do avião; contudo, no momento da fotografia, estas duas personagens ignoravam ainda tudo do acidente aéreo do qual acabavam de escapar. Por vezes também a palavra pode ir ao ponto de contradizer a imagem de maneira a produzir uma conotação compensatória; uma análise de Gerbner (The Social Anatomy of the Romance Confession Cover-Girl) provou que em certas revistas sentimentais a mensagem verbal dos títulos de capa (de conteúdo sombrio e angustiante) acompanhava sempre a imagem de uma cover-girl radiante. As duas mensagens entram aqui em compromisso: a conotação tem uma função regularizadora, preserva o jogo irracional da projecção-identificação.

 

 

A insignificância fotográfica.

 

Vimos que o código de conotação não era provavelmente nem «natural» nem «artificial», mas histórico, ou, se preferirmos, «cultural»: os signos são aí gestos, atitudes, expressões, cores ou efeitos, dotados de certos sentidos em virtude do uso de uma certa sociedade: a ligação entre o significante e o significado, isto é, bem vistas as coisas, a própria significação, permanece, se não imotivada, pelo menos inteiramente histórica. Não podemos, pois, dizer que o homem moderno projecta na leitura da fotografia sentimentos e valores que dizem respeito ao carácter ou que são eternos, isto é, infra ou trans-históricos, a não ser que se precise bem que a significação, essa, é sempre elaborada por uma sociedade e uma história definidas; a significação é, em suma, o movimento dialéctico que resolve a contradição entre o homem cultural e o homem natural. Graças ao seu código de conotação, a leitura da fotografia é pois sempre histórica; ela depende do «saber» do leitor, como se se tratasse de uma língua verdadeira, inteligível apenas se se soubessem os signos. No fim de contas, a «linguagem» fotográfica acaba por lembrar certas línguas ideográficas em que unidades analógicas e unidades sinaléticas estão misturadas, com a única diferença de que o ideograma é vivido como um signo, enquanto a «cópia» fotográfica passa pela denotação pura e simples da realidade. Encontrar esse código de conotação seria pois isolar, inventariar e estruturar todos os elementos «históricos» da fotografia, todas as partes da superfície fotográfica que obtêm o seu descontínuo até de um certo saber do leitor, ou, se preferirmos, da sua situação cultural.

Ora, nesta tarefa será preciso talvez ir ainda mais longe. Nada diz que haja na fotografia partes «neutras», ou pelo menos a insignificância completa da fotografia talvez seja completamente excepcional; para resolver este problema, seria preciso, em primeiro lugar, esclarecer completamente os mecanismos de leitura (no sentido físico e já não semântico do termo) ou, se quisermos, de percepção da fotografia; ora, quanto a este ponto, não sabemos grande coisa: como lemos nós uma fotografia? Que captamos? Em que ordem, segundo que itinerário? O que é captar? Se, segundo certas hipóteses de Bruner e Piaget, não há percepção sem categorização imediata, a fotografia é verbalizada no próprio momento em que é captada ou, ainda melhor, ela só é percebida quando verbalizada (ou, se a verbalização tarda, há desordem da percepção, interrogação, angústia do sujeito, traumatismo, segundo a hipótese de G. Cohen-Séat a propósito da percepção fílmica). Nesta perspectiva, a imagem, aprisionada imediatamente por uma metalinguagem interior, que é a língua, não conheceria, em suma, nenhum estado denotado; não existiria socialmente senão imersa pelo menos numa primeira conotação, aquela mesma das categorias da língua; e sabemos que toda a língua toma partido sobre as coisas, que ela conota o real, mesmo que não o faça senão ao distingui-lo; as conotações da fotografia coincidiriam pois, grosso modo, com os grandes planos de conotação da linguagem.

Assim, além da conotação «perceptiva», hipotética mas possível, encontrar-se-iam então modos de conotação mais particulares. Em primeiro lugar, uma conotação «cognitiva», cujos significantes seriam escolhidos, localizados em certas partes do analogon: perante uma certa vista de cidade, eu sei que estou num país norte-africano, porque vejo à esquerda uma tabuleta em caracteres arábicos, ao centro um homem de albornoz, etc.; a leitura depende aqui estreitamente da minha cultura, do meu conhecimento do mundo, e é provável que uma boa fotografia de imprensa (e todas elas o são, visto que são seleccionadas) se sirva facilmente do saber suposto dos seus leitores, ao escolher as provas que comportam a maior quantidade possível de informação deste género, de maneira a euforizar a leitura; quando se fotografa Agadir destruída, vale mais dispor de alguns signos de «arabidade», embora a «arabidade» nada tenha a ver com o próprio desastre, uma vez que a conotação proveniente do saber é sempre uma força tranquilizadora: o homem ama os signos e de preferência aqueles que são claros.

Conotação perceptiva, conotação cognitiva: fica o problema da conotação ideológica (no sentido mais amplo do termo) ou ética, a que introduz na leitura da imagem razões ou valores. E uma conotação forte exige um significante muito elaborado, de preferência de ordem sintáctica: encontro de personagens (vimo-lo a propósito da trucagem), desenvolvimento de atitudes, constelação de objectos. O filho do Xá do Irão acaba de nascer; na fotografia está: a realeza (berço adorado por uma multidão de criados que o rodeiam), a riqueza (várias amas), a higiene (batas brancas, tecto do berço em plexiglass), a condição humana dos reis (apesar de tudo o bebé chora), isto é, todos os elementos contraditórios do mito principesco estão presentes, tal como os consumimos hoje. Trata-se aqui de valores apolíticos, e o léxico é rico e claro nisso; é possível (mas é apenas uma hipótese), que ao contrário a conotação política seja a maior parte das vezes confiada ao texto, na medida em que as escolhas políticas são sempre, se assim o podemos dizer, de má-fé: duma fotografia posso dar uma leitura de esquerda ou de direita (ver sobre este assunto um inquérito do IFOP, publicado pelos Les temps modernes, em 1955); a denotação, ou a sua aparência, é uma força impotente para modificar as opções políticas: nunca nenhuma fotografia convenceu ou desmentiu ninguém (mas ela pode «confirmar»), na medida em que a consciência política é talvez inexistente fora do logos: a política é o que permite todas as linguagens.

Estas breves observações esboçam uma espécie de quadro diferencial das conotações fotográficas; vemos, de qualquer modo, que a conotação nos leva bastante longe. O mesmo é dizer que uma pura denotação, um aquém da linguagem, é impossível? Se ela existe talvez não seja ao nível daquilo a que a linguagem corrente chama o insignificante, o neutro, o objectivo, mas, muito pelo contrário, ao nível das imagens propriamente traumáticas: o trauma é precisamente o que suspende a linguagem e bloqueia a significação. Sem dúvida, situações normalmente traumáticas podem ser captadas num processo de significação fotográfica; mas é precisamente então que elas são assinaladas através de um código retórico que as distancia, as sublima, as apazigua. As fotografias propriamente traumáticas são raras, pois, em fotografia, o trauma é inteiramente tributário da certeza de que a cena realmente se passou; era preciso que o fotógrafo estivesse lá (é a definição mítica da denotação); mas dito isto (que, a falar verdade, é já uma conotação), a fotografia traumática (incêndios, naufrágios, catástrofes, mortes violentas — tiradas ao vivo) é aquela de que não há nada a dizer; a foto-choque é pela sua própria estrutura insignificante: nenhum valor, nenhum saber, em último caso nenhuma categorização verbal podem ter domínio sobre o processo institucional da significação. Poderíamos imaginar uma espécie de lei: quanto mais o trauma é directo, mais a conotação é difícil; ou ainda: o efeito «mitológico» de uma fotografia é inversamente proporcional ao seu efeito traumático.

Porquê? É que sem dúvida, como toda a significação bem estruturada, a conotação fotográfica é uma actividade institucional; à escala da sociedade total, a sua função é integrar o homem, isto é, tranquilizá-lo; todo o código é ao mesmo tempo arbitrário e racional; todo o recurso a um código é pois uma maneira de o homem se afirmar, de se pôr à prova através de uma razão e de uma liberdade. Neste sentido, a análise dos códigos talvez permita definir historicamente uma sociedade com mais facilidade e segurança do que a análise dos seus significados, porque estes podem aparecer muitas vezes como trans-históricos, pertencendo a um fundo antropológico mais do que a uma autêntica história: Hegel definiu melhor os antigos Gregos ao delinear a maneira como eles faziam significar a natureza do que ao descrever o conjunto dos seus «sentimentos e crenças» sobre este assunto. Assim, talvez devamos fazer mais do que inventariar directamente os conteúdos ideológicos do nosso tempo, pois, ao tentarmos reconstituir na sua estrutura específica o código de conotação de uma comunicação tão ampla como a fotografia de imprensa, podemos esperar encontrar, na sua própria delicadeza, as formas de que a nossa sociedade se serve para se tranquilizar, e através disso agarrar a medida, os desvios e a função profunda deste esforço: perspectiva tanto mais fascinante, como dissemos no princípio, quanto, no que diz respeito à fotografia, ela se desenvolve sob a forma de um paradoxo: aquele que faz de um objecto inerte uma linguagem e que transforma a incultura de uma arte mecânica na mais social das instituições.

 



 

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

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terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Amanhã nas bancas!


JL 1023


De 16 a 29 de Dezembro



A 'biografia' do Pai Natal

Textos de Alice Vieira, Carlos Ademar, Isabel d’Ávila Winter, João Tordo, Lídia Jorge, Miguel Castro Caldas, Paulo Castilho, Ricardo Adolfo, Rui Vieira e valter hugo mãe • A crónica de Helder Macedo

João Abel Manta
Pintura, pintura, pintura

D. Manuel Clemente, Prémio Pessoa
Entrevista: David Trueba, cineasta escritor

Sugestões de (novos) livros, discos e DVD para presentes

A autobiografia do astrónomo Nuno Santos

JL/Educação: Literacia em Portugal: um problema urgente

Arquitectura escolar: entrevista a Manuel Graça Dias e inquérito a cinco arquitectos

Propostas para as férias de Natal

Camões

Agenda Cultural

Lançamento Antologia da Poesia Portuguesa


Poemas Portugueses – Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI (ed. Porto Editora) é lançado hoje, terça-feira, 15, pelas 19, na Fundação Medeiros e Almeida, em Lisboa. Vasco Graça Moura irá apresentar a obra, que reúne oitocentos anos de poesia, 267 autores e mais de dois mil textos. Estarão presentes os seus coordenadores, Jorge Reis-Sá e Rui Lage e, no final da sessão, os actores Luís Lucas, Pedro Lamares e Carmen Dolores declamarão alguns dos poemas da antologia.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

ÚLTIMOS DIAS - A Bicicleta de Faulkner, n' A Barraca

É só até ao próximo Domingo, dia 13, que se pode ver A Bicicleta de Faulkner, de Heather McDonald, n'A Barraca, em Lisboa. Duas irmãs a braços com a doença da mãe. Claire escolhe ficar, ajudar, no Mississpi natal; Jett parte para Nova Iorque. É escritora. Mas atormentada pela 'página em branco' regressa a casa e o conflito instala-se. «O conflito entre as duas irmãs nasce da diferença de formas de lidar com o mal de Alzheimer: Jett não desiste de tentar chamar a mãe à realidade enquanto Claire, leitora voraz de O Som e a Fúria - uma rapariga desengonçada que corre até ao lago de cada vez que ouve a bicicleta de Faulkner dirigir-se para lá na esperança de poder falar com o escritor que alimenta o seu imaginário - desenvolveu a capacidade de acreditar que a realidade se pode apresentar sob vários planos e permite e embarca nos delírios da mãe na esperança de que o sítio onde ela está seja melhor do que aqui». Palavras da encenadora, Rita Lello. Com Maria do Céu Guerra, Rita Fernandes, Sérgio Moura Afonso e Susana Costa. Para ver hoje e amanhã, às 22. Domingo, às 17 horas.



Foto de Luís Rocha

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Jello Biafra em Portugal

O lendário vocalista dos Dead Kennedys vem a Portugal, pela primeira vez, apresentar o seu novo projecto Jello Biafra and The Guantanamo School of Medicine. Sem deixar de lado as guitarras punk, os temas reflectem o seu ponto de vista político sobre a questão bélica EUA – Iraque. Acompanhado em palco por Andrew Weiss (Rollins Band, Ween, Butthole Surfers), Kimo Ball (Freak Accident), Ralph Spight (Victims Family), e Jon Weiss. Cine-Teatro Ginásio Clube, em Corroios, a 11, às 21 e 30

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Vulcão

VULCÃO. Valdete vive presa a Samuel. Mulher submissa que antes de casar sonhou um amor feliz, depois de ter um filho cego, revelou-se a verdadeira natureza do seu marido. Samuel vive obcecado com a ideia do extermínio dos ‘mais fracos’. Prisioneira na sua própria casa, algemada, resiste ao martírio na esperança de descobrir o paradeiro do seu filho. Peça de Abel Neves ligada ao Dia Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra as Mulheres, com encenação de João Grosso e interpretação de Custódia Gallego. Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, até 20 de Dezembro; de quarta a sábado, às 21 e 45; domingos, às 16 e 15

sábado, 5 de dezembro de 2009

O quê?!

TEATRO DA TRINDADE. O quê?!, uma viagem pelo século XX às costas de Samuel Beckett é a proposta do encenador e actor João Lagarto, que com um grupo de jovens estudantes finalistas do Conservatório – Afonso Lagarto, Rita Brito e Tiago Nogueira – constrói um espectáculo a partir do universo de Beckett (Na Sala Estúdio até 6 de Dezembro; terça a sábado, às 21 e 45; domingos, às 17 e 30); De Fernando Pessoa e Alessandro Hellmann, em cena na Sala Principal, O Banqueiro Anarquista Esterco do Demónio, com encenação de Annalisa Bianchi e Virgínio Liberti (de 10 a 13 de Dezembro; terça a sábado, às 21 e 30; domingo, às 16). Teatro da Trindade, Lisboa

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

As luzes de Natal

TRUPILARIANTE. As Luzes de Natal, um espectáculo de teatro e fantoches destinado aos mais novos, envolto num mistério principal: quem roubou a música natalícia? O público é convidado a ajudar o Duende Pompom nesta aventura. A produção está a cargo da Trupilariante Companhia de Teatro-Circo. Auditório do Espaço Monsanto, Lisboa. Amanhã, sábado, dia 5, e também dia 6, às 15 horas.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O falso Sócrates

Antes que me ponham um processo, o que não costuma acontecer a jornalistas culturais, deixem-me esclarecer o título. Longe de mim afirmar aqui que sua excelência, o primeiro-ministro de Portugal, é uma pessoa falsa. Nem quero dizer que este Sócrates que nos governa é relativamente falso comparando com o original grego. Quero apenas chamar a atenção para o facto de que existe um falso Sócrates no Facebook.

Este Sócrates postiço, chamemos-lhe antes assim para evitar a ambiguidade da palavra falso, farta-se de jogar ao Farmville e é amigo do Alberto João Jardim (não sei se do falso se do verdadeiro). À parte disso, até à data, ainda não proferiu quaisquer declarações que o prejudiquem. Pelo contrário, mostra-se dialogante com os regimes mais improváveis, lúdico e preocupado com questões agrícolas.

No mural uma mensagem moral: «Caros Portugueses, Deixem por aqui as vossas ideias para o país. Certificar-me-ei que todas as mensagens serão lidas em tempo útil por um membro do estado. Com os melhores cumprimentos, José Sócrates». Uma ideia inócua e oportuna. Aliás, a Câmara de Lisboa. Liderada pelo (seu) amigo António Costa, lançara já um Orçamento Participativo, tendo em vista uma comunicação mais próxima com as pessoas.

O Facebook do falso Sócrates encheu-se de mensagens verdadeiras, de verdadeiros amigos do primeiro-ministro ou eleitores socialmente atentos, empenhados em construir um Portugal melhor. Ana Barbosa revela-se disponível e alertada: «Primeiro-ministro de Portugal: tenho a honra em tê-lo como amigo!... Sempre que possível, vou dando-lhe umas dicas para o país... até naquilo que concordo ou não...». A Iolanda mais intimista: «Sr. Primeiro-ministro! Convido-o a visitar o meu álbum do Quénia! Estive lá no mesmo ano 2005!» O Cunha Manuel mais céptico: «Este país, assemelha-se muito ao Vaticano que apesar de perder fiéis todos os dias, não muda a sua forma rígida de proceder e pensar’.»

Quanto a mim, fui honrado com um convite de José Sócrates para aderir à página de fãs do Farmville. Achei-me por isso no direito de meter conversa com o dito. Só que sempre que eu o cumprimentava no chat, ele saía do Facebook. Imagine-se, um primeiro-ministro com medo de mim. Até que uma fonte próxima de Sócrates me garantiu que aquele Sócrates não é o Sócrates, nem o actual nem o antigo. O que me levou à questão socrática ou pós-socrática: até que ponto é que o Sócrates é o Sócrates? O que é ser Sócrates?

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Nas bancas!

Cimeira de Copenhaga
Salvar a Terra
Entrevista com Filipe Duarte Santos e Viriato Soromenho Marques sobre Ambiente e alterações climáticas *As preocupações ecológicas na arte e na literatura
Rui Ramos
Uma nova 'síntese' da História de Portugal

Especial: O mito dos vampiros no cinema e na literatura

Entrevista: Alexandre Desplat, o cinema que se ouve
Artes: A pintura de Isabel Sabino e Uma Aventura no cinema
Letras: Um livro sobre António Sérgio, lido por Eugénio Lisboa
Crónicas: José Luís Peixoto, o regresso de 'Verdades quase Verdadeiras', e João Medina escreve sobre George Steiner

A autobiografia de Jorge Costa Pinto
Agenda Cultural

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Kurt Vile e B Fachada no Frágil

Em noite de concerto duplo, Kurt Vile, músico indie/folk norte-americano, interpreta temas do seu primeiro disco a solo Childish Prodigy e, em jeito de pré apresentação do vindouro segundo disco, B Fachada apresenta algumas das novas canções em concerto. Frágil, em Lisboa, a 9, às 23

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Animações de bolso

No cinema, o movimento é uma ilusão de óptica criada pela maquinaria. Na verdade, o que existe é uma sequência de fotografias, de imagens estáticas. A sua rápida sucessão cria essa ideia de realidade. O processo é de tal forma mecanizado que, muitas vezes, nem os realizadores se apercebem da sua complexidade. Nem têm que se preocupar com isso. Apesar do o cinema, mais do que outras, ser uma arte fortemente tecnológica, ao contrário do que acontecia no tempo dos Irmãos Lumiére, os realizadores já não são engenheiros.

Na animação esta ideia de frames, de imagens estáticas, de ilusão de óptica é mais explícita. Porque é sabido que aquelas imagens não têm uma existência real, só existem no ecrã porque alguém as desenhou. E é fácil exemplificar a ilusão de movimentos mesmo a uma criança. Através de um flipbook, livrinho que, passando rapidamente as páginas, nos dá a ideia de acção. Ou num flipbook de trazer por casa, que qualquer um pode fazer, por exemplo, nos cantos das folhas de um caderno. O processo é tão simples quanto isto. Num canto desenha-se um rapaz, uma bola e um cesto. Na folha seguinte, a bola sai-lhe das mãos, e, página por página, vai avançando até entrar no cesto. Uau! Para uma criança, é como entregar a fórmula da poção mágica do Astérix. Não se perde a magia, apenas se aprende a cozinhá-la.

A Nintendo desenvolveu na sua consola, a DSI, um programa que alimenta electronicamente este jogo óptico. Através de uma pentouch vão-se desenhando os frames, um por um. Mais tarde pode acrescentar-se o som e alguns efeitos. E o filme está feito. O software é simples, básico, e aproxima-nos de um conceito artesanal. Algumas obras assim feitas participam num concurso que decorre na Videoteca, no dia 2 de Dezembro. Será entusiasmante perceber o que pode ser feito com tão pouco. Eu próprio já me deixei deslumbrar com o software (de download gratuito). Mas quanto a mim, fica por resolver um problema básico: há que saber desenhar.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Amanhã nas bancas!


JL 1021

de 18 de Novembro a 1 de Dezembro


Luísa Costa Gomes: As Ilusões do Real
A escritora fala do seu novo romance, do 'espírito do tempo',
das linguagens contemporâneas e das relações com a Cultura

Isabel Alçada: A ministra que veio dos livros
Que desafios imediatos?
Textos de Roberto Carneiro, Júlio Pedrosa, G. d'Oliveira Martins e José M. Canavarro

Entrevista com Peter Handke e balanço do Estoril Film Festival

António Olaio, um artista no universo pop

Cristina Robalo Cordeiro, o último Lobo Antunes

Eunice Muñoz, a magia da grande actriz

Claude Lévi-Strauss, a paixão do outro

Helder Macedo, retrato do artista como cão

Ricardo Adolfo, Perdido na Tradução

Autobiografia de Nuno Crato

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Bungee Jumping social

Agora viver debaixo da ponte está ao alcance de todos. Há uma empresa sedeada na Holanda que propicia umas férias muito especiais. Por um preço nada simbólico, é oferecida a sensação de ser um sem-abrigo, nas ruas de Paris ou Londres. A organização distribui um cartão e assegura a segurança aos seus clientes. Como se não ter casa fosse divertido, e se colocasse a dúvida: vou para as Seicheles ou para debaixo de uma das pontes do Sena? Da mesma forma, no Brasil, fazem-se visitas guiadas às favelas. É a pornografia da pobreza, que, por algum motivo, seduz aqueles que não são pobres. Não para deixarem tudo e tornarem-se um deles, à imagem de um santo ou coisa assim, mas para ter uma experiência radical, como quem faz bungee jumping.

Um salto para o abismo, com a segurança do elástico que nos prende e nos puxa novamente para cima. Mas as sociedades são suficientemente acidentadas para podermos cair num precipício sem rede, nem corda, nem tempo para nos agarramos às paredes. O desemprego está a crescer, mais vale não brincar aos pobres. E nos Estados Unidos, terra de oportunidades onde se ‘cai na rua’ com uma facilidade incrível, vários blogues mostram que qualquer um pode ser um sem-abrigo.

O bungee jumping social tem como factor positivo, pelo menos, o interesse pelo Outro. Mesmo que seja uma curiosidade mórbida, para os dias que correm, não está mal. Há quem resolva o seu mal-estar com esse mundo de forma menos obscena. No documentário de Rui Simões, Ruas da Amargura, que agora se estreia em sala, encontramos algumas dessas personagens que habitam o submundo de Lisboa. E, lado a lado, uma série de voluntários que dedicam o seu tempo a ajudá-las. Sem fazer turismo.

Se a ideia é apenas conhecer melhor os jardins da cidade, mais vale fazê-lo de forma abrigada, como o eco-resort alternativo, de um só quarto, montado no Jardim da Estrela (ver www.dass.pt). Quanto ao resto, já se sabe: a rua não é sítio onde se more e é uma vergonha social não conseguirmos dar a volta a isso.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Amanhã nas bancas!

JL 1020

de 4 a 17 de Novembro



A BÍBLIA
As respostas de A. M. Pires Cabral, Alice Vieira, Gastão Cruz, José Agostinho Baptista, José Augusto Mourão, José Mattoso, Teresa Toldy e Vasco Graça Moura. Inquérito a propósito de Caim, de José Saramago.

A literatura como heterodoxia, por Carlos Reis


LUÍS SEPÚLVEDA
Sem sombra de esquecimento. Entrevista sobre o novo romance e sobre o Chile de Allende e Pinochet


Gabriela Canavilhas: quem é a ministra da Cultura


João Aguardela, tradição e vanguarda


Albatroz Azul, de João Ubaldo Ribeiro: texto de Juva Batella e entrevista


Francisco José Viegas lido por Miguel Real


Os novos filmes de Fernando Lopes e Pedro Costa


A autobiografia de João Paulo Borges Coelho

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Jorge Pelicano: Fora da linha


Com Pare, Escute, Olhe, Jorge Pelicano foi um dos grandes vencedores da 7.ª edição do DocLisboa, ao receber três prémios na competição nacional: melhor longa-metragem, melhor montagem e melhor filme para o júri IPJ Escolas. É o culminar de uma intensa semana para o realizador de Ainda há Pastores?, já que o seu novo documentário foi ainda distinguido na XV edição do Festival Internacional de Cinema Ambiente de Seia, também em três categorias: Ambiente, Lusofonia e Juventude. O JL falou com Jorge Pelicano na sua última edição, num breve encontro que aqui republicamos.

Depois do sucesso de Ainda há Pastores?, Jorge Pelicano regressa ao documentário com novo retrato do Portugal profundo. Em Pare, Escute, Olhe, o realizador viaja até Trás-os-Montes para descobrir uma região abandonada pelo poder central, em que o despovoamento é quem mais ordena. Aí encontrou uma população resignada, sobretudo com a notícia do fecho da linha ferroviária do Tua e a decisão política de se construir uma barragem. Neste cenário, Jorge Pelicano, 32 anos, jornalista da SIC, não hesitou: assumiu como sua a causa da salvaguarda da identidade da região. O documentário, que passa amanhã, quinta-feira, 22, às 22 horas, no Festival Cine Eco, de Seia, depois de ter estado na competição nacional do DocLisboa, é uma arma ao serviço dessa luta. Que terá desenvolvimentos em exposições fotográficas, concertos com a banda sonora original ou em outras intervenções públicas, numa cidadania que se faz de câmara de filmar na mão. É que a indiferença não faz parte do guião de Jorge Pelicano.

Jornal de Letras: Este documentário surge na sequência dos acidentes ferroviários que têm vindo a ser noticiados, ou havia um interesse anterior?

Jorge Pelicano: Quando comecei o projecto ainda não havia notícias dos acidentes (quatro, nos últimos dois anos), nem da barragem. Eu queria tratar o tema do despovoamento e a melhor forma de o fazer era falar das linhas ferroviárias encerradas, nomeadamente em Trás-os-Montes. Essa é a razão principal porque decidi trabalhar na linha do Tua.

O despovoamento e um certo Portugal que está a desaparecer estão sempre presentes nos seus documentários. O que lhe interessa nesses temas?
A perda de identidade. O objectivo deste filme é levar as pessoas a reflectir sobre o que é realmente importante para o nosso país. Se o progresso, se a possibilidade de termos regiões com a sua própria identidade, com transmontanos, alentejanos, ribatejanos. Porque nem tudo tem de ser igual. É por isso que o filme se chama Pare, Escute, Olhe. Numa sociedade em constante mutação como a nossa, é importante de vez em quando pararmos, escutarmos as pessoas e olharmos para o que temos. E, a partir daí, estabelecer prioridades.

Nesse sentido, é uma reflexão sobre os últimos 35 anos de Democracia a partir deste caso concreto?
Sim. E por isso um filme mais político. Porque devíamos mesmo estabelecer essas prioridades e pensar para onde vamos, para onde queremos ir. Um exemplo: daqui a 20 ou 30 anos, as aldeias de Trás-os-Montes vão estar completamente despovoadas. O que ainda vamos a tempo de evitar. Mas os políticos, que estão sempre a falar em desertificação, contribuem para que isso aconteça, como se mostra no filme. Mais uma vez, a barragem do rio Tua vai trazer electricidade para o litoral à custa do interior.

Este é um documentário que não receia tomar partido?
Exactamente, isso é muito claro. Para mim, o documentário deve ser uma arma. Chamar à atenção e pôr o espectador a pensar. Pare, Escute, Olhe é totalmente parcial. É uma defesa da região de Trás-os-Montes.

Na rodagem, o que mais o surpreendeu?
Não haver luta. No início, estava à espera de encontrar pessoas revoltadas. Muitas sentem falta do comboio, mas estão resignadas. Com tantos anos de esquecimento, dizem que já não vale a pena lutar. Isso só acontece porque os responsáveis políticos não vão ao terreno. Este filme também tem como objectivo levar ao centralismo de Lisboa a grandeza daquele património.

A nível cinematográfico, ensaiou novas opções estéticas?
A grande novidade é o facto de ter uma banda sonora original, de Manuel Faria, Frankie Chavez e Francisco Faria. De resto, é a mesma óptica de Ainda há pastores?: um documentário muito cinematográfico, embora aqui a câmara passe mais despercebida. Não tem voz off, nem entrevistas. Vive do dia-a-dia das pessoas.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Gabriela Canavilhas, Pianista de causas

A pianista e gestora cultural Gabriela Canavilhas será a partir de segunda feira, dia 26, a nova ministra da Cultura. Quando estava à frente da Associação Música - Educação e Cultura, entidade que gere a Orquestra Metropolitana de Lisboa o JL traçou-lhe o perfil que agora aqui republicamos.


É uma das mais talentosas pianistas portuguesas. Apaixonou-se pela obra de Schubert, mas foi a tocar música de câmara de compositores portugueses que fez escola. Depois de ter editado sete álbuns e passado por muitos palcos nacionais e internacionais, aceitou, em 2003, ficar à frente dos destinos da Associação Música – Educação e Cultura, que gere a Orquestra Metropolitana de Lisboa (OML). Gabriela Canavilhas, 46 anos, é uma pianista de causas. Acredita que os artistas têm um papel social importante e sempre o tomou nas mãos ao defender as obras de compositores portugueses. Na OML quer subir a fasquia e conta ao JL os planos para o futuro


Foi o cheiro do primeiro piano em que tocou que lhe guiou os passos. O perfume ficou-lhe colado à pele, à memória e ao coração. Hoje, sempre que pensa nas notas de uma partitura, inspira, e recorda o aroma desse instrumento «antigo, preto, nobre». Gabriela Canavilhas tinha então 12 anos e acabava de receber a sua primeira aula no Conservatório de Ponta Delgada, com a professora Natália Silva. Não começava cedo. «Nos Açores, ter uma formação musical não era tão vulgar quanto isso. Mas tive pais atentos que resolveram pôr-me a estudar.» Podia ter sido apenas um complemento da sua educação, mas acabou por revelar-lhe o verdadeiro talento. Nessa primeira aula, desconhecendo ainda o nome das notas, tocou com a professora uma peça a quatro mãos. E a pouco e pouco a linguagem musical foi sendo cada vez mais fácil de falar – embora reconheça que se tivesse começado mais cedo poderia ter chegado mais longe como instrumentista. «É determinante começar cedo até para moldar o físico ao instrumento. Além disso, as obras que se aprendem nessa altura, ficam consolidadas no corpo de uma forma muito mais intensa do que as que se estudam depois dos 25 anos.»
A adolescência foi um tempo cheio de actividades musicais, mas não só. Com as duas irmãs teve aulas no atelier de uma pintora, onde aprendeu a misturar pigmentos, a preparar telas, a segurar nos pincéis e todas as muitas técnicas da arte. A sua irmã mais velha, hoje poetiza e pintora, «estava ligada a tudo quanto era movimento radical e, sempre que havia algo que fosse um corte na tradição, lá estava ela. E levava as irmãs.» Os pais – pai militar, e mãe professora – a tudo assistiam sem grandes interferências. «Em plenos anos 70, estávamos entregues a nós próprias, com o apoio da família, mas com a liberdade para crescer e conhecer o mundo.» O universo da música começara a tornar-se cada vez mais sério para Gabriela e a irmã mais nova – hoje também pianista, a viver na Noruega – mas, como diz entre risos, «os pais só se aperceberam disso quando começaram a ver o nosso nome nos programas dos concertos.»
Acabado o liceu, sempre com boas notas, partiu da ilha rumo ao Curso Superior de Piano do Conservatório de Lisboa. Tinha 17 anos e a viagem não a assustava. Nascida em Angola – por acaso, durante uma comissão do pai – sempre se sentiu 100% açoriana e por isso herdeira de uma tradição de «cidadãos do mundo». «O facto de vivermos no meio do mar, com laços estreitos com os Estados Unidos e o continente, faz com que estejamos em permanente viagem, o que facilita muito a circulação. Vir estudar para Lisboa foi naturalíssimo», diz com um ligeiríssimo sotaque das ilhas.
À chegada encontrou um verdadeiro mestre: o professor António Menéres Barbosa. «Foi e é um transmissor de uma velha escola de piano que se tem vindo a perder: a da excelência.» Não lhe perdoava nenhum tipo de defeito sempre na busca da perfeição. Foi duro, reconhece, mas muito estimulante. Pois, como Gabriela Canavilhas costuma dizer, «nada é pior do que um artista satisfeito.»

À conversa com as notas
No Conservatório teve também aulas de música de câmara com Olga Pratz, com quem descobriu o prazer de tocar em conjunto. Gabriela Canavilhas fascina-se com o intimismo que se pode atingir nesta «conversa» entre músicos. Cada fala traz algo novo à discussão e o que se bebe de uns e de outros é sempre mais do que nos solos. Nessa «embriaguez» de querer aprender tudo o que se relacionasse com este tipo de música, resolveu partir para Siena e participar nos famosos cursos de Verão da Accademia Musicale Chigiana. Durante três inesquecíveis meses, tocou com músicos do Japão, Coreia, Alemanha ou Austrália, formando vários trios, quartetos, quintetos, num ambiente em que as tradições da Toscânia se misturavam com todas as notas. Saiu de Siena com um diploma de mérito. Depois voltou a Lisboa e acabou o curso. Começou então a sua aprendizagem no palco e surgiram vários convites para participar em diversos agrupamentos de música de câmara. Mas a pianista sempre gostou muito mais do estudo e dos ensaios do que dos concertos propriamente ditos. «Não há nada mais difícil do que subir a um palco e provar, através da linguagem da arte, toda a preparação que foi necessária para chegar ali. Mas quando se reúnem as condições ideais – um bom piano, um público atento, um artista concentrado – podem acontecer momentos verdadeiramente mágicos que compensam o intérprete de todo o esforço.»
Quanto ao repertório, sempre preferiu tocar compositores portugueses. «Acredito que temos obrigação de contribuir para a divulgação dos nossos músicos», afirma convicta. No princípio dos anos 90, quando começou a tocar em público e a gravar – tem sete álbuns editados – houve também o boom dos jovens compositores portugueses, de Eurico Carrapatoso a Sérgio Azevedo, com quem criou boas relações. Aliás, algumas das peças que lhe deram mais prazer tocar foram as que Carrapatoso escreveu para o trio Vocalizos, que a pianista formou com Ana Ferraz e António Costa, e que, entre outros, apresentava também peças de Victorino de Almeida ou Pinho Vargas. Seguiram-se mil actividades, desde concertos em que tocou obras de vários compositores portugueses, a recitais dedicados a Vianna da Mota, Alfredo Keil, Lopes-Graça ou Augusto Machado, e a participações nos mais variados festivais nacionais e internacionais – tocou nos Estados Unidos, Brasil, Itália, Macau ou Alemanha. Na Antena 2 (RDP), ao longo dos anos, participou nos programas O Despertar dos Músicos, A Quatro Mãos, A Força das Coisas e Império dos Sentidos. Fundou ainda o projecto do Festival Música Atlântico, que decorre nos Açores há já nove anos. «Foi uma pedrada no charco que começou a integrar os Açores no roteiro das grandes produções», diz com orgulho. Gosta de colaborar nas actividades da sua terra e chegou mesmo a ser assessora do director regional da Cultura. Aliás, acredita que, com mais ou menos visibilidade, todos temos uma quota-parte de responsabilidade social. «Cada vez tenho mais desprezo pelas pessoas que não se revêem na sociedade em que vivem.»

Subir a fasquia
Foi pela «consciência de serviço público» que, em 2003, resolveu aceitar o convite dirigido pela vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa (CML), para a direcção da Associação Música – Educação e Cultura que gere a Orquestra Metropolitana de Lisboa (OML) e a Orquestra Académica Metropolitana. Precisou de «arrumar a casa» e não foi fácil. A situação financeira que encontrou – após a saída da direcção do maestro Miguel Graça Moura – era «devastadora». Os seus objectivos foram preservar a instituição, assegurar a estabilidade da casa, melhorar a qualidade da orquestra e primordialmente prosseguir o trabalho de formação em simultâneo com divulgação musical e a performance. «Num ano e meio estava consolidado o projecto artístico e recuperado o caminho ascendente da orquestra e das escolas», conta. Mas nesse processo deixou de tocar piano. Os primeiros dois anos foram de tal forma duros que temeu não saber já ler partituras. Concentrou-se na tarefa que tinha em mãos. Pôs o piano em espera e, passados quatro anos, sente que há da parte do presidente da CML, António Costa, «uma vontade política forte de encerrar definitivamente os problemas do passado que se prendiam com questões financeiras.» Por isso aceitou a recondução no cargo – por mais três anos – e espera que políticos e fundadores cumpram as suas promessas. Gabriela Canavilhas pretende cumprir com o que acredita ser a obrigação da instituição: contribuir para o desenvolvimento intelectual e para a exigência do público. «O público tem de ser respeitado e acarinhado. É preciso fazê-lo subir à grande música. Os espectadores merecem que se apresentem mais do que high lighs da música clássica.»
De há dois anos para cá voltou a tocar. E, como nunca perdeu o contacto com os músicos da orquestra e com os maestros convidados, sente que as soluções musicais que hoje encontra lhe surgem naturalmente. Mas onde tudo soa melhor é no seu refúgio em Aviz, no Alentejo. Sabe que precisa de sair do reboliço da cidade e acalmar, ali, no contacto com a natureza. Sentada ao piano de cauda, com vista para o campo, encontra-se consigo própria. Ao fim de semana fica muito tempo a tocar. O marido, militar, não a acompanha a quatro mãos, prefere escutar, e sempre a apoiou em todos os seus passos. A filha, Joana, 23 anos, tocou vários instrumentos mas, embora seja «uma ouvinte atenta», pôs a música de lado para se dedicar ao jornalismo.
Nessas horas que dedica às teclas, Gabriela Canavilhas faz sobretudo escalas técnicas para voltar a treinar os dedos, mas não só. Anda a estudar um pouco de Schumann e uns improvisos de Schubert, o seu compositor preferido. «Tem uma emoção, poesia, intensidade e densidade que me tocam particularmente», explica. Além disso, prepara o concerto de Mozart, K 482 – com que passou no exame final do Conservatório. «Nunca o toquei com uma orquestra», diz com um sorriso na voz. Quem sabe se para o ano?

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Uma escola que seja sua

Gostava de escrever isto de forma a não vos sobressaltar, mas não há maneira: em 2006, no Afeganistão, um director de escola foi decapitado diante da família por um grupo de homens armados. Cometera o «crime» de afrontar uma das leis fundamentais dos talibãs, dando aulas a meninas. No dia seguinte foi preciso explicar o sucedido a estas crianças: não “apenas” o horror da execução, como também o facto, irremediável, de que mais ninguém ousaria levá-las à escola.
Infelizmente, o Afeganistão está longe de ser o único país a favorecer deliberadamente o analfabetismo feminino. Segundo o relatório da ONG Internacional Save the Children, em 70 países do planeta boa parte das meninas são obrigadas a entrar no mercado de trabalho em plena infância. Na Etiópia ou na Nigéria, três quartos das alunas têm de deixar a escola para dar lugar aos rapazes. Mesmo na China, gigante industrial, o índice de sub-escolarização das raparigas é muito elevado. Estima-se que, ao todo, haja no mundo cerca de 200 milhões de meninas impedidas de frequentar a escola.
O que estes governos parecem não entender, para além do respeito pelos direitos humanos mais elementares, é que, como demonstram todos os estudos, o livre acesso do sexo feminino à escola está directamente associado à baixa dos índices de subnutrição, mortalidade infantil, propagação da SIDA e a uma melhor situação económica. Em contrapartida, uma jovem sem escolaridade está muito mais susceptível à pobreza, aos casamentos forçados, à violência sexual e aos maus tratos e tem muito mais possibilidade de criar filhos analfabetos, subalimentados, vítimas de doenças crónicas.
Como travar este flagelo? Em 2000, 189 países assinaram a Declaração Milénio, lançada pelas Nações Unidas, com vista à obtenção da paridade escolar em 2015. Oito anos decorridos, será esta uma meta realista? Três regiões do mundo assinalam ainda atrasos importantes: o Médio Oriente e o Norte de África, a África Ocidental e Central e no Sudeste asiático. Como se escreve no estudo encomendado pela UNICEF, The Gap Report – Gender achievements and prospects in Education, «já falhámos o objectivo da paridade em 2005, não podemos fazê-lo também em 2015.» No primeiro mundo, em que as mulheres ainda enfrentam tantos «obstáculos de cristal» (na política e no quotidiano laboral, por exemplo), não se pode continuar a olhar esta causa como uma acção de caridade ou beneficiência. No mundo globalizado deixou de haver lugar para exotismos. As ondas de choque provocadas pela borboleta, que bate as asas na China, são cada vez mais fortes.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Nas bancas!

JL 1019


José Saramago, o Peso de Deus

Caim, lido por Miguel Real

Entrevista com o romancista

Reportagem do 'Escritaria' dedicado ao Nobel português

João Tordo, Prémio Saramago: «Uma responsabilidade para o futuro»


Herta Müller, Nobel da Literatura: Escrever a Ditadura

Texto de Mª Teresa Dias Furtado

Depoimentos de Teresa Salema e João Barrento

Crónica de Alexandre Pastor


Sérgio Godinho, Fausto e José Mário Branco juntos e ao Vivo


J. P. Borges Coelho, Prémio Leya


A reabertura do Teatro da Trindade


Jonas Mekas no Doc: «O cinema será sempre novo»


Carlos Reis: A língua portuguesa e Lídia Jorge


Entrevista com Jean Daniel


A autobiografia de Zuenir Ventura


JL/Educação:

Ensinar o Ambiente

Que mudanças no Estatuto da Carreira Docente?


Camões • Agenda Cultural


terça-feira, 13 de outubro de 2009

Prémio Leya

João Paulo Borges Coelho, com o romance O Olho de Hertzog, é o vencedor da 2.a edição do Prémio Leya.

sábado, 10 de outubro de 2009

Seu Jorge ao vivo num planeta qualquer




«Me dá uma cerveja para molhar as palavras», disse esta noite Seu Jorge, no Campo Pequeno, num concerto onde tudo aconteceu. O brasileiro entrou em palco acompanhado por 14 músicos (que exagero!), disposto a fazer dançar a assistência bem composta, com os seus ritmos quentes que oscilam entre o samba, o funk e o hip-hop. Pelo caminho, uma desgarrada de pandeiretas, versões de Bowie em português, o público a cantar em coro os hits, e uma rapsódia de Carnaval (com direito a Mamãe eu Quero....). Ah e houve ainda espaço para que o João Vargas pedisse em casamento a Ana. E tudo o resto são cantigas. Amanhã, dia 10, repete no Porto.


quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Herta Müller, segundo Gonçalo M. Tavares


A propósito da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Herta Müller aqui republicamos a coluna Biblioteca, de Gonçalo M. Tavares, do JL n.º 1009, precisamente dedicada à escritora e poetisa alemã.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Amália nunca cantou Guerra Junqueiro


Penas é de Fernando Caldeira

Como a propósito do 10.º aniversário da morte de Amália se tem repetido erroneamente que Guerra Junqueiro foi o primeiro poeta erudito que Amália cantou, republicamos o nosso artigo de 2005, onde se demonstra por A + B que a grande fadista nunca cantou tal poeta


O erro repetiu-se ao longo de décadas. Amália nunca cantou Guerra Junqueiro. O famoso poema Penas, que a fadista cantou no início da carreira, sobre o Fado Bacalhau, é da autoria de Fernando Caldeira, um outro poeta seu contemporâneo.

Quem, em carta ao nosso jornal, revelou o facto foi Maria Cristiano Moniz Ribeiro, uma atenta leitora , apaixonada por Amália, que tem quase 1400 gravações da fadista. O JL confirmou que o poema não é de Junqueiro, com a especialista da obra do poeta, Manuela Rêgo, e com a Casa-Museu Guerra Junqueiro, no Porto. Dentro do espólio não foi encontrado qualquer escrito que se assemelhasse.

Fica assim desfeito um erro que se tem repetido ao longo dos anos.

Em sucessivas edições de discos (incluindo a que o nosso jornal recentemente publicou) e em textos teóricos de ilustres especialistas em fado, o poema aparece sempre atribuído ao poeta portuense. O que é perfeitamente compreensível, pois, passando uma vez a informação errada, é natural que os teóricos do fado não se dediquem a verificar a autenticidade da autorias da diversas letras. Fernando Caldeira foi assim o primeiro poeta erudito que Amália cantou, logo em 1947. Terá descoberto o poema numa página de jornal, quando viajava para o Brasil. O fado, de resto, acabou por ser gravado apenas em terras de Vera Cruz e só posteriormente chegou a Portugal (diz-se que o dono do Café Luso não queria que Amália editasse em Portugal, porque tinha medo que os admiradores assim deixassem de ir vê-la ao vivo). Maria Cristiano desconfiou do equívoco logo de início, mas não quis expor a situação com medo de prejudicar Amália: «Quando, em Angola, em 1958, comprei discos da Amália vi, num 78 rpm, que o fado Penas vinha atribuído a Guerra Junqueiro disse ao JL. Estranhei, mas não me competia desfazer o erro; e, no meu pouco contacto com ela, não me atrevi a chamar-lhe a atenção. Mas quando em 2001 se começou a falar no Panteão e na 'coincidência' de o túmulo dela ser ao lado de Guerra Junqueiro 'o primeiro poeta erudito que ela cantou', achei demais que ele ficasse com os louros que são Fernando Caldeira (...)».

E chamou a atenção de várias personalidades, entre as quais Vítor Pavão dos Santos: «Como tenho visto recorrer-se a ele para quase tudo o que se queira fazer sobre Amália, escrevi a esse senhor e mandei-lhe fotocópias do livro; ele telefonou-me dizendo que 'não valia a pena falar no erro'».

Contudo, posteriormente, como explica a Maria Cristiano, o biógrafo reincidiu, no booklet de um vídeo dedicado a Amália: «Na página nove do livrinho que acompanha os vídeos, diz o Vítor Pavão do Santos que «julga que Amália deveria voltar a cantar Guerra Junqueiro».

Mas de quem é o erro? Nem Maria Cristiano nem o JL conseguiram descobrir o original da publicação consultada pela fadista, mas, das duas uma, ou Amália enganou-se a ler ou o jornal enganou-se a escrever. Maria Cristiano avança com uma tese: «A minha teoria é que os brasileiros arredados da nossa literatura erroneamente achavam que não existia o tal Fernando Caldeira e substituíram-no pelo conhecido Guerra Junqueiro e Amália, na sua proverbial modéstia e timidez, calouse! E o erro perpetuou-se, tendo embora havido possibilidade de o corrigir.» Este equívoco histórico tomou tal dimensão que quando se falou da transladação dos restos mortais de Amália para o Panteão Nacional vários se referiram à coincidência de ficar sepultada ao lado de Guerra Junqueiro, incluindo o Presidente da República, Jorge Sampaio.

O fado Penas teve uma importância decisiva na carreira de Amália e na história do próprio Fado. Foi o primeiro prenúncio do que havia de ser um dos mais pertinentes contributos da cantora para o fado: a adaptação de poemas eruditos.

Tal intuito ganhou maior relevância com a adaptação de Fria Claridade, de Pedro Homem de Mello e, mais tarde, já com Alain Oulman, ao chamar para o fado grandes poetas como Camões, David Mourão-Ferreira, Alexandre O'Neill ou Manuel Alegre.

Essa tendência para adaptar poetas eruditos, de resto, foi-se mantendo ao longo dos tempos, até à actualidade, com nomes como Carlos do Carmo, Mísia, Cristina Branco, Katia Guerreiro ou Liana. Nascido na Casa da Borralha, em Águeda, Fernando Caldeira (1841-1894) foi governador civil de Aveiro, deputado em várias legislaturas, pintor e músico amador. Licenciou-se em Direito, pela Universidade de Coimbra. Escreveu várias peças de teatro, sobretudo comédias, que foram interpretadas pelos melhores actores do seu tempo, como Lucinda Simões, Rosa Damasceno ou Ferreira da Silva. Entre outras obras é o autor de O Sapatinho de Cetim, Os Missionários, A Mantilha de Renda, Sara, As Nadadoras, As Médicas, A Congressista, A Mosca e Madrugada.

O livro de poesia Mocidades, editado em 1882, com reedição em 1903, prefaciada por D. João da Câmara, inclui meia centena de poemas, entre os quais Penas, dedicado ao seu irmão, Eduardo Caldeira. Fernando Caldeira é ainda o patrono da Escola Básica do 2º e 3º ciclos de Águeda. Não há qualquer livro do autor disponível no mercado.