quinta-feira, 26 de março de 2009

Arado, de A. M. Pires Cabral

Arado

I

A mecânica do arado é rudimentar,
clarividente e sóbria. Nada tem
em demasia: o que a função requer
e nada mais.

No perfil eficiente do arado
há qualquer coisa de navalha, qualquer coisa
de falo em riste, em transe de fecundar.

De facto, noutros tempos,
era o arado que rasgava a terra,
fazia dela um ventre aconchegado -
cenário certo para o deflagrar da vida
que vai dentro das sementes.

Isto foi no tempo em que havia agricultura
nos gestos quotidianos dos homens
e das mulheres.

II

O arado ainda está no curral,
encostado a um canto.

Já ninguém o usa, à excepção
das galinhas que se empoleiram nele
quando chega a hora de cismarem.

Por enquanto tem sido poupado ao fogo,
como se no seu futuro estivesse
ainda escrito um último regresso
às genésicas tarefas da lavoura.

Mas ele sabe que nada disso está escrito.
Melancólico, antecipa
a hora da corrosão.

III

Mas o arado perpetua-se em mim.
De facto, em horas de arriscada exaltação,
gosto de pensar nestes versos como sendo
um arado com que rasgo outras terras
mais voláteis e menos aráveis,
e nelas julgo deixar alguma semente.

Pura ilusão.
Nem as tais terras se deixam rasgar
assim facilmente,
nem o meu arado tem vocação de vida.

De modo que retorno ao arado
que de facto arou.

Ei-lo cabisbaixo no quintal.
Não sei de mais lastimosa coisa
do que um arado ferido de desuso,
encostado a um canto,

poleiro improvisado,

pasto de ferrugem e carcoma,

lenha em breve.

Do novo livro de A. M. Pires Cabral, Arado, recém-lançado pela Cotovia.

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