Temos recebido vários textos dedicados ao José Manuel Rodrigues da Silva, que prometemos ir publicando por aqui. Este foi escrito pela sua amiga Marta Lança, quando o foi visitar ao hospital.
Do lado de fora do edifício do hospital imagino aí estás tu, preso a uma cama, a morrer depressa. Tu que passas a vida em cafés, a escrever a tinta roxa e a fumar cachimbo sem parar - o cachimbo que tanto te inspirou e agora ajudou a matar-te. De fora da casa hospitalar que tantos sustos me tem dado espero uma amiga para irmos juntas até ao teu quarto. A enorme diferença entre nós neste momento, é que posso fazer-te uma visita e, passado umas horas, sair para o frio da rua, com a liberdade nas pernas, a vida no coração e a minha morte adiada, por umas décadas talvez, apesar da dor de ver morrer e perder os outros. É a diferença entre a minha liberdade e a tua prisão: a de ficares deitado de costas para a janela, respirar a custo, sentir o Inverno deste início do ano ser o último Inverno da tua vida, e senti-lo num edifício cinzento cheio de gente a lutar com a morte e uns poucos a vencê-la, com a ajuda dos profissionais de serviço. E, nessa condição estupidamente humana da tua mortalidade, agarras-te às memórias que já escreveste mas há outras que na altura não te tinhas lembrado e agora vêm surgindo. Um pormenor aqui, outro ali, sem a lógica sequencial que te permitiu escrever três volumes de uma Prova de Vida, com aquela escrita lúcida e visual (é que vê-se mesmo tudo!), a distância possível e a ternura também, de uma narração que fez justiça às personagens da tua vida. Testemunho subjectivo, que se implica nas coisas, no tempo histórico que atravessas, com todas as combinações dos amores e passos que o acaso te fez dar. Há qualquer coisa de extrema honestidade que desarma pela excepção, por conseguirmos seguir o mapa vivencial e afectivo que te situa num centro e numa disponibilidade para a vida.
Agora que te despedes desta vida disponível a maneira de recordar há-de ser diferente. Surgem revisitações no escuro do quarto da secção de internamento de doenças pulmonares. Abeiram-se amigos e amantes junto à tua cama de doente durante a noite para te sussurrarem coisas belas e tu a eles, a nós todos que nos cruzámos algures contigo. Para não nos esquecermos das coisas importantes. E uma delas é que não querias perder tempo a escrever e a pensar sobre aquilo que não gostavas, com tanta coisa que valia a pena divulgar. Era a mesma generosidade de quem no liceu davas 20 a qualquer aluno a quem reconhecesses um despontar do pensar e criar, uma vontade que se transformasse em paixão pela cultura. A tantos ajudaste em auto-estima. Lembro-me de uma aluna que desatou a chorar com a tua nota avantajada porque nunca lhe tinham dito que era inteligente. Disseste a uns que tinham jeito para teatro, e eles foram aprender teatro e são hoje actores; outros para estudarem filosofia e eles fizeram disso uma ética de vida. A mim e a outras amigas para escrevermos, escrevermos, escrevermos muito, ainda estávamos na fase da escrita do eu, e um dia podíamos ser escritoras. Escritora, essa palavra ficou assim a crescer dentro de mim estes anos todos com muita vontade de o ser, mas muita timidez também pois era para pessoas como tu, leitores exigentes, que me apetecia escrever. Leitor e crítico que um dia me deste uma resposta zangada a uma pergunta imbecil sobre poderes literários para um artigo, mas depois arrependeste-te do teu próprio tom. “E quando me irrito, quando tenho que fazer uma coisa que não me apetece de todo, transformo-me num pequeno animal. Sabes, sou Gato (símbolo chinês). Se ninguém me chateia, não chateio ninguém. Caso contrário, arranho.”
Da última vez que te vi, no cruzamento da linha azul com a amarela, eras um recém-doente. Acabavas de saber a tua condenação e, assustado mas sem perder a ironia, disseste que andavas há 50 anos numa dança com a morte e que um dia tinhas de “ir para a cama com a gaja”. Hoje também troquei da azul para a amarela para te vir visitar e a morte já está a insinuar-se na tua cama. Mas na altura desse diagnóstico, quando o médico deu a notícia com um ar pouco animador, no fundo de ti havia aquela esperança, semelhante à que tinhas quando dançavas com a morte e pensavas: “a mim a gaja não me apanha”. Não antes de fazer as coisas que encheram a tua vida e a de tanta gente, além dessa militância num tipo de jornalismo personalizado e literário que já poucos assinam. Quando a evidência da morte é total, os milagres são os de deixar um sopro de vida.
Subimos, a minha amiga e eu, o elevador até a secção de doenças pulmonares. Estás magro, pá!
Marta Lança, 7/1/09
2 comentários:
Sou leitor do JL há vários anos, e o desaparecimento - apenas desta esfera, e isso é que me anima - de J.M. Rodrigues da Silva entristeceu-me profundamente.
Com muita pena minha, nunca o conheci pessoalmente. Certa vez, quando andava em busca do nome de uma banda de músicos que havia visto no canal Mezzo, sem ter conseguido então fixar-lhes o nome, lembrei-me de ligar para a redacção do JL e pedir para falar com Manuel Halpern. Depois de lhe ter colocado a minha questão, apeteceu-me perguntar-lhe: "Pode-me passar ao jornalista R. da S.? Gostava de lhe dar um abraço pelo telefone...".
Mas a timidez venceu-me e nunca sequer cheguei a escutar a voz de um jornalista que eu tanto admiro. Com R. da S. aprendi muito do que sei sobre cinema, sobre literatura, sobre arte, sobre escrita. Foram muitos anos de um quinzenal convívio que me enriqueceu como ser humano. Devo a JM Rodrigues da Silva a aprendizagem daquilo que realmente significa "Cultura". Ensaístas e escritores de renome debruçaram-se muitas vezes sobre este tema, mas poucos conseguiram, como R. da S., aquilo que é tão importante: o sentido de partilha da Cultura. R. da S. partilhava-a connosco, seus leitores, quinzenalmente. E a sua ausência desta esfera vai-nos custar muito, e doer-nos muito.
Alguém disse, aquando da morte de Pushkin: "Que estranho, a Rússia sem Pushkin...". Eu acho que vai ser tão estranho, o JL e a Cultura sem Rodrigues da Silva.
Envio-lhe por aqui o abraço que nunca lhe pude dar pessoalmente.
M. R. A.
PS: Parabéns a Marta Lança, pelo seu belíssimo e comovente texto.
Só hoje soube pela crónica do Lobo Antunes que o meu querido professor Rodrigues da Silva morreu. Como é possível? Ele que me tirou a mim e aos outros 15 das trevas, que nos mostrou o mundo da cultura, que nos fez descobrir que podíamos ser tudo o que quiséssemos desde que nos entregássemos por inteiro. Ele que entre 1983-85 esgotou a verba da Esc. Sec. D. Maria I para nos levar a tudo o que era agenda cultural, desde a Cornucópia ao Quarteto, passando pela Cinemateca e pela Comuna.
Ao longo destes mais de 20 anos, sempre que se cruzava com um de nós em Lisboa, lembrava-se de nós, reconhecia-nos. Sempre a sorrir, com a sua roupa saída do Maio de 68. Mostrou-nos o lado irreverente, não-alinhado, da vida. Fez-nos ver que continua a fazer sentido ser de esquerda, que não nos devemos conformar. Assustou-se quando lhe disse que ia para Direito, pediu-me que fosse para Teatro. Fui para Direito mas não me esqueci do que me ensinou e levei a irreverência comigo, nunca perdi o olhar crítico com que me ensinou a mim e àquela turma fantástica a filtrar o que nos rodeia. Deixou-me uma directiva escrita na despedida do 11.º ano - Nunca perca a alegria de viver! Tornei essa frase no meu imperativo categórico de vida. Mas, hoje não posso deixar de estar triste, muito triste. Fiquei mais velha com esta minha perda.
Desculpe lá, stôr, mas tenho mesmo que chorar.
Rita Torroais
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