sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O sonho do cinema



Conheci-a num destes dias turbulentos mas sem história, em que a pressa à mistura com a obrigação duma apresentação digna, me levou a trocar momentaneamente de cabeleireira. O ritual em si não teria qualquer interesse, sobretudo para este jornal pouco tolerante com futilidades, mas é, quase sempre, nesses momentos sem gravador nem bloco de notas por perto, que encontro as melhores histórias de pessoas que não escreveram um livro, não pintaram um quadro nem aspiram a qualquer tipo de notoriedade.
Natural do Rio Grande do Sul, a mulher que, nessa manhã, se ocupou da minha melena, não era exactamente uma garota de Ipanema, mas uma dessas brasileiras, cuja aptidão natural para o atendimento público melhorou consideravelmente a qualidade de algum comércio lisboeta. Apesar da conjuntura difícil, alimentava o sonho de vencer na Europa, graças a enormes doses de simpatia e muitas horas de trabalho. Queria voltar ao Brasil tão depressa quanto possível, mas com alguma coisa de seu. O que nunca seria – anunciava-me com brio pessoal – era uma dessas «marias chuteiras», o que, na grande criatividade vocabular dos brasileiros, significa mulher que corre de futebolista em futebolista até acumular pé-de-meia que a conforte quando escassearem os encantos.
Nas suas palavras adivinho uma linhagem de lutadoras, alimentadas, na labuta diária, por sonhos secretos. Falou-me das irmãs, dos enxovais para bebés que ainda sabiam fazer com requintes há muito desusados por cá, dos cueiros com rendas laboriosamente aplicadas, da farofa, das revistas que recortavam no quarto de adolescentes, figuras de luz a despertar risinhos nas meninas em crescimento.
«Minha mãe amava cinema», disse-me ela, quase no final do trabalho, dengosa no falar enquanto trocava de mão o secador e a escova. «Via tudo, desde musical americano a filme francês, muito sério. Por isso, me deu esse nome». Qual?, pergunto, já a imaginar Gildas, Marlenes e outras geniais femmes fatales dos écrans. Mas à sedução do enigma sobrepôs-se a graça. Ela sorriu e respondeu, subitamente coquette nos seus (mais de) 80 kgs: «Audrey!»

1 comentários:

carlos disse...

Uma Audrey Hepburn de 80 kg! Eis, sem dúvida, um achado.
E uma ternura.