segunda-feira, 8 de maio de 2006

Quem descobriu o quê?

Rezava o ano da graça do senhor de 1522. Uma frota portuguesa de quatro barcos, comandada por Cristóvão Mendonça, a mando d’el Rei D. Manuel, atingiu a costa da Austrália. Estar-se-ia à procura da ilha do Ouro, da Terra Java, descrita por Marco Polo. A viagem manteve-se secreta, como era política na época. Talvez, para mais tarde aproveitar. Na altura, seria difícil para um país com pouco mais de um milhão de habitantes colonizar um território tão vasto. E a Austrália não se afigurava atraente enquanto entreposto comercial. Dois séculos e meio depois, o capitão James Cook, ao serviço da coroa britânica, alcançou aquela longínqua terra e proclamou ter chegado tão longe como nunca nenhum homem havia antes chegado. Não era verdade. Ou, pelo menos, esta é a teoria do jornalista australiano Peter Tricket, explicada no livro Beyond Capricorn, publicado na Austrália pela East Street Publications, com edição prevista para Portugal, lá para o final do ano, com a chancela da Caderno.
A teoria, na verdade, já é antiga. Foi uma hipótese avançada ao longo dos anos por historiadores portugueses como Duarte Leite, Jaime Cortesão e Gago Coutinho. E por ingleses e australianos, como Thomas Phillipps, Richard Henry Major, George Collingridge e Lawrence FitzGerald. A grande novidade de Tricket foi a descoberta (na Biblioteca Nacional de Camberra) de fragmentos de 15 mapas, muito detalhados, da costa australiana. Segundo Tricket, é uma prova irrefutável da presença portuguesa. O jornalista passou oito anos a remontar os mapas, e chegou a um desenho bastante similar ao da actual Costa, onde 120 acidentes geográficos estão identificados com nomes portugueses. Para tal a dedicação que o jornalista até aprendeu português só para poder ler as crónicas da época.
Vitorino Magalhães Godinho, no entanto, em declarações ao JL, observa a descoberta destes mapas com desconfiança: «Tal implicaria várias viagens de reconhecimento». Contudo, segundo Tricket terá havido apenas uma viagem. Quanto muito, duas. De resto, Magalhães Godinho é claro: «Sabe-se que os portugueses estiveram por lá, mas não souberam aproveitar. Teriam que estabelecer capitanias, ou pelo menos feitorias para possíveis exportações. Não interessava como escala para o continente americano. Estas reivindicações não têm grande razão de ser. O processo é muito mais complexo. Integra-se num todo. É natural que os próprios indígenas das outras ilhas tenham chegado à costa norte da Austrália. Mas isso na nossa perspectiva não são descobrimentos».
Luís Filipe Barreto concorda: «Uma coisa é chegar a um ponto. Outra é fazer viagens regulares. Os portugueses terão navegado por ali, possivelmente com a ajuda de asiáticos. É natural que haja o reconhecimento dessa zona. É como no Brasil. A partir da década de 1480 temos conhecimento de que existe uma ilha grande». E explica, ao JL, o desinteresse português pela maior ilha do mundo: «O objectivo de todas estas viagens era dar lucro. Na Austrália não havia nada, na perspectiva do séc. XVI. E era impraticável para uma população de um milhão e 200 mil habitantes. Doze por cento estava envolvida nesta investida. Tinham que se preocupar com o jogo do comércio e ainda com a fronteira terrestre com Castela. Se achasse aquela costa interessante, poderia ter apostado, como aconteceu com o Brasil. Mas nós éramos uma espécie de nómadas marítimos. Interessavam-nos pontos de relevância»
Por isso tudo, Magalhães Godinho dá a maior importância à viagem de Cook. E refuta a possibilidade de fazer de Cristóvão Mendonça um novo ícone das nossas navegações: «Nos Descobrimentos não há um herói, uma data, um local. As viagens seguem-se a viagens anteriores. Às vezes de pescadores. Há que estabelecer rotas, a latitude. Só a partir daí é que há um descobrimento real. No Atlântico Sul temos a certeza de que houve muitas viagens antes de estabelecer a rota certa.» Luís Filipe Barreto chama a atenção para a relatividade dos Descobrimentos. E, a propósito dessa deturpação, da perspectiva ocidentalizada, conta uma anedota: «Quando nós chegámos os nativos terão gritados ‘Fomos descobertos! Fomos descobertos!» Contudo, não deixa de valorizar o trabalho de Peter Tricket e a viagem de Cristóvão Mendonça, como mostra da capacidade dos nossos quadros: «Fomos a vanguarda em redes de exploração marítima global. Devemos ter orgulho nisso. A costa de Nova Iorque foi descoberta por um português, Estêvão Gomes, ao serviço de Castela. Os nossos quadros tiveram um papel fundamental na chamada primeira globalização»
Vitorino Magalhães Godinho é muito mais céptico: «Este mapa desmistifica-se. Também já foi dito que foram os chineses a descobrir o Atlântico ou que Cristóvão Colombo nasceu no Alentejo. São modas que vêm ciclicamente.»
E se Portugal tivesse mesmo colonizado a Austrália? Na história não há ses. Mas, como exercício de pura ficção, poderemos perguntar: por cá comeríamos carne de canguru, construir-se-iam favelas nos arredores de Sydney e Melbourne (cidades que não teriam estas nomes) e o acordo ortográfico teria mais um entrave. Ou, como imagina Peter Tricket, «os australianos já teriam ganho o Campeonato do Mundo de Futebol».

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