quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Um filme maior do que nós



Juventude em Marcha, de Pedro Costa

É-me um tanto doloroso falar deste filme. Este filme dá pelo nome de Juventude em Marcha, realizou-o (corrijo: criou-o, porque é uma criação) Pedro Costa, e é uma obra de arte. Então? Então, pergunto-me: para que escrevo? Respondo: escrevo sobre este filme (e preferencialmente sobre cinema) para partilhar do que gosto com leitores que ignoro quem sejam. E também, qual modesto sinaleiro, para sugerir caminhos. Só que. Só que temo (mais uma vez temo) estar a escrever para o boneco.

Quem irá ver este filme? Quantos lisboetas, almadenses, portuenses, conimbricenses e setubalenses (Juventude em Marcha estreia-se nestas cinco cidades) o irão ver? Quantos o irão preferir às múltiplas tretas por aí nos ecrãs? Não sei, mas a experiência, nesta como noutras pequenas tragédias lusitanas, fez de mim um pessimista. Portugal é o que é (não digo o quê), razão que bonda para Pedro Costa, reconhecido internacionalmente como um grande cineasta à escala mundial, não ter por cá grande crédito. Não obstante, sem desprimor para ninguém, afirmo que, nascido em 1958, ele integra (com Manoel de Oliveira, à beira dos 98 anos, e João César Monteiro, já falecido) o trio dos nossos maiores cineastas de sempre. E este seu filme estreado em Cannes, louvado pela crítica francesa, italiana, espanhola e norte-americana, com presença garantida em mais uma dezena de festivais em três continentes e estreias comerciais agendadas para França, Holanda, Bélgica, Coreia do Sul e Japão oferece-se (é o termo) a Portugal, onde nasceu e cuja realidade de algum modo reflecte. Saberemos nós merecê-lo? Para falar com franqueza, tenho as maiores dúvidas. Mas oxalá me engane. Oxalá. Reticências por preencher, vamos ao filme, um filme que prolonga dois anteriores de Pedro Costa (Ossos, 1997, e No Quarto da Vanda, 2000), mantendo-se nesse mesmo cenário: o Bairro das Fontainhas e a comunidade cabo-verdiana que nele vive. Ou só parcialmente vive, porque aquele bairro (à data da rodagem do filme) estava já semidemolido, os seus habitantes iam sendo transferidos a pouco e pouco para um outro, um bairro dito social, sito nos arredores e, obviamente, melhor. Melhor porque, em vez de barracas, os habitantes das Fontainhas tinham agora casas «como deve ser». Apesar disso. (Parênteses para evocar um livro maravilhoso que há muito deveria ter sido reeditado. Título: Lisboa, Uma Cidade em Transformação, Europa-América, 1969; autor: Francisco Keil do Amaral; excerto: este que vou resumir. Era uma vez uma aldeia sem água canalizada, o que obrigava as mulheres a irem à fonte. Um belo dia, para alegria geral, assinalada com basto fogue tório, essa aldeia passou a ter distribuição de água ao domicílio, deixando as mulheres, pois, de ir à fonte. O que viria a concluir-se mais tarde as tornou. tristes. É que essa ida à fonte era para elas também um modo de convívio. E sem ele. Lição a tirar: o progresso material é indispensável, mas não pode ser atingido à revelia das relações humanas preestabelecidas, porque são elas o cimento mais forte de uma qualquer comunidade).

Fecho o parêntese para de um grande arquitecto regressar a um grande cineasta. E a este seu filme. É que o drama (drama no sentido original do termo) de Juventude em Marcha reside precisamente nesta passagem, nesta mudança de cenário de um bairro degradado para um não-lugar onde nada falta, excepto o principal: o convívio ou, se se quiser, a solidariedade à porta de casa. E sobre isto há um momento de génio no filme de Pedro Costa: aquele plano magistral com o protagonista preto retinto a gritar por alguém no meio de prédios enormes de paredes imaculadamente brancas, com as janelas todas fechadas. Uma voz clamando no deserto, no deserto de betão. Um deserto habitado, mas com as pessoas todas viradas para dentro. Para dentro de casa, tendo agora como única companhia a televisão, a televisão permanentemente ligada. Como um electrodoméstico, uma lareira, a ficção travestida de realidade, um fluxo contínuo de imagens em vez do fluxo contínuo da vida.

Juventude em Marcha sustenta-se nestes dois pólos: um bairro que desaparece e um não-lugar que, algures, surge em vez dele. Mas sustenta-se também num protagonista: o sr. Ventura, um operário da construção civil reformado, cabo-verdiano há décadas residente em Portugal, a quem os mais novos do bairro (ou ex-bairro) tratam carinhosamente por pai. Quando o filme se inicia, o sr. Ventura acaba de ser deixado pela mulher com quem vivia e fica sem nada. Ela levou-lhe tudo, ele ficou sem teres & haveres, excepto com uma casa nova que lhe vão dar no novo bairro e na qual ele não sabe que lá meter. Nem meter-se a ele próprio. Pelo que deambula. Qual sonâmbulo, deambula do bairro velho para o bairro novo e vice-versa, em busca de. Não da mulher, não de dinheiro, mas dos seus «filhos»; de pessoas, de partilhas, de histórias comuns, de alguém com quem falar, de alguém a quem ouvir, com quem viver viver em comunidade. Consegue-o? Veja-se o filme. Até ao derradeiro plano.

Sobre isto mil filmes podiam ser feitos, mas é e será sempre o modo, o modo de fazer que tudo determina. Nas artes como nas letras. Pedro Costa não é um antropólogo, um cristão movido por sentimentos piedosos, um ávido do exótico, muito menos um voyeur. Por isso, o seu filme não analisa o social, não o aponta à compaixão, não o vê resguardado pelas grades de um zoo, nem o espreita pela fechadura (ou pela câmara, neste caso). Não: o que faz de Pedro Costa um cineasta moral (prefiro dizer: ético) é precisamente a sua postura, que recusa tanto a ciência, quanto a sensibilidade, a diferença e a coscuvilhice. Para, assim, fazer de nós não espectadores, mas seres que estão, que permanecem, que partilham. O quê? A dignidade do Outro.

Se a televisão mostra (não mostra, mas faz de conta), o cinema (o de Pedro Costa) integra-nos. Com ele, o real não está lá fora, está cá dentro; os seus filmes são memória, não esquecimento. Não são datados pelo tempo, criam o tempo. Também por isso os seus planos não duram décimos de segundo, com a câmara sempre em movimento; duram eternidades e são fixos, e a durée deles, a sua rigidez austera mineral, não é um mero artifício, é uma atitude. E raramente o cinema nos tem dado, como na obra de Pedro Costa, uma tão plena simbiose entre ética e estética. Um cinema assim como alguém sobre Juventude em Marcha já escreveu não é horizontal, é vertical: da terra às nuvens, do animal ao humano, da natureza à arte, do enquadramento ao quadro.

Perante isto, não vale a pena perguntarmo-nos se com Juventude em Marcha estamos no domínio da ficção ou do documentário, porque Pedro Costa está já para além disso, como também daquilo a que no cinema se chama «géneros». A bem dizer, o seu cinema já nem é cinema no sentido banal e quantas vezes abastardado da palavra, mas (como preferia Robert Bresson) cinématographe uma grafia, pois; uma caligrafia. Singular, única, inimitável, sem epígonos possíveis. Assim também (para só me cingir a portugueses) Oliveira, César e a dupla semidesaparecida António Reis/Margarida Cordeiro. Não se trata sequer de estilos, mas de modos de ser. Entre a vigília e o sonho, entre o prosaico e o poético. («Eu gostava de te oferecer cem mil cigarros, uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos, um automóvel, uma casinha de lava que tu tanto querias, um ramalhete de flores de quatro tostões. Mas antes de todas as coisas bebe uma garrafa de vinho do bom, e pensa em mim. (.) Anteontem, no meu aniversário foi altura de um longo pensamento para ti. A carta que te levaram chegou bem? Não tive resposta tua. Fico à espera. Todos os dias, todos os minutos, aprendo umas palavras novas, bonitas, só para nós dois. Mesmo assim à nossa medida, como um pijama de seda fina. Não queres? (.) Eu com a picareta e o cimento. E tu, com o teu silêncio. Uma vala tão funda que te empurra para um longo esquecimento.») Já chega? Basta? Não, não basta, mas careço de espaço e por aqui me hei-de ficar. Estreia-se amanhã entre nós um filme (português, para mais lusófono, oh pátria da tão apregoada lusofonia!), será que ireis vê-lo? Vá, dizei que sim e ide. Para sermos dignos de algo maior do que nós. Como se, por uma vez, a vida imitasse a arte.

JUVENTUDE EM MARCHA. Portugal, 2006. Realização: Pedro Costa. Interpretação: Ventura, Vanda Duarte, Beatriz Duarte, Gustavo Sumpta, Cila Cardoso, Isabel Cardoso, Alberto Barros «Lento», António Semedo «Nhurro», Paulo Nunes, José Maria Pina, André Semedo, Alexandre Silva, Paula Barrulas. Duração: 155 minutos. Distribuição: Contracosta. Estreia nacional: amanhã, quinta-feira, dia 23. Salas: Nimas (Lisboa), Cine Teatro Recreios (Amadora), Cidade do Porto (Porto), Dolce Vita (Coimbra) e Charlot (Setúbal).


RODRIGUES DA SILVA

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