É difícil não sucumbir ao peso de um nome que se tornou mito, estampa de t-shirt, ícone sagrado. Che Guevara é um símbolo da revolta e da contestação. Foi apropriado pelos Clash, nos anos 70 e 80, e pelos Rage Against the Machine, nos anos 90. Nos anos 2000, tornou-se definitivamente objecto de merchandising. Acima de tudo, desconfio, porque a silhueta daquele homem bonito, barbudo, de boina, calha bem na roupa e em outros objectos. Diz a moda. Che sobreviveu, melhor do que Fidel, até à actualidade. Mas a verdade é que este Che que ficou já não se sabe quem é. Nem que ideias defende quem veste as suas t-shirts. Em muitos casos, tudo leva a crer que nenhumas. A apropriação da imagem de Che pela sociedade de consumo está na antítese dos seus ideais. E é também por isso que o díptico de Steve Soderbergh ganha particular pertinência. E é importante na forma como está feito: inimaginativo, fiel `as memórias, tentando reproduzir a história tintim por tintim. Mesmo que para isso cinematograficamente se perca e não seja, seguramente, uma obra maior.
Não sei se foi uma intenção didáctica que esteve na base desta empreitada de quatro horas de Soderbergh e Benicio del Toro (actor e produtor), dividida em duas partes, O Argentino e Guerrilha. É certo que numa altura em que se questiona de forma generalizada o sistema capitalista, faz sentido recuperar um mito que simboliza os grandes ideais românticos. Mas Che não foi apenas um sonhador, um utópico, mas um homem que acreditava nos seus ideais com tal convicção que se dispôs a morrer por eles. O filme pode desfazer esses laçarotes cor-de-rosa, com que se embelezou a figura no tempo, procurando resgatá-la da sua existência real. A dimensão mitológica, a enormidade da figura e a preocupação didáctica, contudo, tornaram-se num constrangimento à liberdade criativa no díptico, transformando-o numa obra seca, de ritmo por vezes entediante, ao estilo de uma encomenda da televisão cubana ou da recriação do 25 de Abril feita pela SIC há 10 anos. Com a importante diferença que Soderbergh tem uma qualidade fílmica superior. Sabe onde colocar a câmara para fugir ao óbvio.
Benicio del Toro é outro problema: não está ao nível que a personagem exigia. Pedia-se-lhe que desse ao Che uma aura romântica e profunda, e ele revestiu-o de uma atroz banalidade. Outros actores não correspondem, numa tarefa difícil, com diálogos declarativos e cenas de exposição pouco subtis. Joaquim de Almeida, que faz de ditador boliviano, contudo, não compromete.
A primeira parte termina bem, com a chegada ao poder em Cuba. A segunda, acaba mal, com a morte de Che na Bolívia. As duas podem ver-se separadamente ou em conjunto. E é bom que se veja e que se recorde a história de uma das maiores lendas do século XX, num retrato desalmado, mas fiel.
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