domingo, 15 de março de 2009

Por Vítor Oliveira Jorge*


Los Millares


Durante o III milénio a. C. construiram-se na Península Ibérica sítios de grande porte, destacados (pelo menos em relação a certos pontos de observação) no território, e que "faziam corpo" com a paisagem circundante.
Esses sítios "monumentais" são normalmente designados, na "literatura da especialidade", "povoados fortificados". Estou evidentemente a referir-me não a locais com estruturas em negativo, do tipo fosso, situados em vales e/ou em encostas, e a muitos outros atribuíveis a este período dito "calcolítico", e portanto desde logo a escolher uma sub-categoria de sítios, se tal categoria é concebível, e não uma simplificação abusiva.
Em 1994, Susana Oliveira Jorge, a partir da sua experiência de Castelo Velho de Freixo de Numão (V.ª N.ª de Foz Côa), e de uma análise comparativa que fez à escala peninsular, concluíu pelo carácter arbitrário e redutor da designação "povoados fortificados", mostrando como debaixo dela se esconde uma enorme variabilidade e toda uma ignorância nossa, decorrente de serem muito poucos os sítios sistematicamente (bem) escavados e publicados.
A verdade é que só o estudo sistemático de toda uma região, com escavação de vários tipos de sítios potencialmente conexos, poderia abrir-nos portas para a compreensão da rede de locais e de trajectos em que estes sítios se inseriam.
A arquelogia portuguesa - e mesmo a arqueologia a nível internacional - nunca teve fôlego para um trabalho dessa natureza e escala, envolvendo equipas estáveis, dezenas de pessoas e décadas de estudo, como acontece em qualquer outro ramo produtivo do conhecimento científico. Assim sendo, não se pode mais do que ter intuições apoiadas nas pesquisas que se vão conseguindo fazer, sendo muitos dos debates meramente "académicos" no pior sentido. Não há nenhuma fraqueza intrínseca à arqueologia (destruição de grande arte dos seus "documentos" pelo tempo, e outras banalidades) - há apenas uma debilidade política que conduz ao seu processo débil de produção. A capacidade negocial é mínima.
Quer dizer, enquanto alguns arqueólogos se entretêm a debater, os "gestores do território", e outros utilizadores "práticos" do mesmo, maravilhados com tal entretenimento, vão procedendo à devastação do que existe em área para a resolução do problema. De modo que a questão teórica e prática estão mais uma vez ligadas: pequenos meios, grandes debates...grandes sábios, impotentes actores sociais que vão cedendo sempre e agradecem muito por um quadradinho de espaço... ou seja, agradecem a esmola de poderem ir continuando a escavar um sítio, como se fosse uma questão de sobrevivência ou um prazer privado...
Seja como for, neste campo do Calcolítico português, o trabalho de S. O. Jorge não pode ser esbatido na sua importância inovadora (considerando-se Castelo Velho como uma excepção e continuando a tratar os restantes sítios da mesma maneira), como também o que já outros autores vêm felizmente fazendo, e que mostra à evidência a complexidade do assunto.
Aqui queria lembrar sobretudo o seguinte:
Quando se observam as plantas, as fotografias, e a realidade ao vivo de sítios como Los Millares (Almería, Espanha), Leceia ou Zambujal (Estremadura portuguesa) e Castanheiro do Vento (Horta do Douro, Vª. N.ª de Foz Côa), para só citar alguns deles, torna-se evidente um certo "ar de família" ao nível da concepção do espaço e de outras características arquitectónicas. Esse "ar de família" (a que alguns chamariam "estilo", mas essa é uma palavra perigosa, porque entifica), que por intuição observamos, pode evidentemente vir a revelar-se ilusório.





Castanheiro do Vento


Mas vejamos: o que caracteriza basicamente estes sítios, tão importantes no património arqueológico peninsular (Los Millares e Vila Nova de S. Pedro - Azambuja, neste caso - são dos locais mais citados em toda a bibliografia sobre a Pré-historia da Península Ibérica)?
Têm nomalmente várias linhas de muretes mais ou menos concêntricas, e por assim dizer as elevações (colinas, ou outras) em que se inserem são "transformadas" por esses dispositivos, tornando-se desse modo toda a elevação no que hoje chamamos um "monumento", quer dizer, nma estrutura imponente, complexa, labiríntica, e com grande quantidade de objectos para ali transplantados.
Essa "transformação" é no sentido de "acasalar" sistematicamente as características geomorfológicas do local com as realizadas pelos seres humanos, numa união entre "natural" e "cultural" que esbate, por absurda, esta dicotomia, como se de uma gigantesca escultura se tratasse. Ora, ninguém se lembraria, numa escultura, ou mesmo numa "instalação", de querer conectar certas características com "o natural" e outras com "o cultural". Uma vez em curso o processo de esculpir e de fazer/refazer - processo esse certamente mais importante do que o próprio "objecto acabado", como tendemos a pensar hoje - o que seria importante seria a enorme afectação de energia (física e "moral", digamos), suportada por uma convicção, por uma crença partilhada, a um determinado local.
Uma vez iniciado o processo, parece que este funcionava como bola de neve, no sentido de ser mantido e eventualmente reforçado e transformado. Ou seja, há aqui uma temporalidade importante, uma memória. Querer saber o sentido último ou único dessa memória não é apenas uma utopia, é uma questão mal posta: não há sentidos primeiros para as coisas, o mundo não nasceu virgem num momento determinado, qualquer passado tinha já, também ele, passado, antecedentes. E mesmo as fases de ruptura , a comprovarem-se, acarretam muito do que existia antes, remodelam e retrabalham evidentemente o que já havia...




Leceia
Os chamados "sítios calcolíticos" (da Idade do Cobre, enfim, tudo designações convencionais), que em abundantes casos entrarão claramente pelo II milénio a. C., eram susceptíveis de muitas representações por parte das populações que os construiram e mantiveram, e a eventual conflitualidade de tais "negociações de sentido" é apenas admissível como hipótese, uma vez que não somos contemporâneos dos "jogos de estatuto" que se disputavam através da construção destas "cenografias" e das performances de que elas eram "cenário" (para usar umas palavras convencionais).
Mesmo que fôssemos contemporâneos de cada um dos momentos em que, ao longo dos séculos, "aconteceram coisas", se deram eventos, nestes locais, apenas ficaríamos tal como o antropólogo actual: com um "presente etnológico" (fabulosa invenção) que tem tudo de artificial, até nas narrativas que as pessoas transmitem.
É muito importante esta consciência básica de quem aborda os temas do ser humano e da sociedade: estas realidades são "matérias sensíveis", a criatura humana é uma criatura da ambiguidade por definição, de forma que a ilusão de uma realidade "aí fora" estática, atingível pelos métodos da ciência, a realidade de um passado acontecido, é um mito ingénuo. Perceber essa ingenuidade é condição "sine qua non" de um maior aprofundamento dos problemas, do seu afastamento em relação à consciência espontânea, não elaborada.
Há uma realidade que se nota em algumas destas edificações: os muretes estruturantes do espaço (seguindo tendencialmente a linha curva e casando-se com o terreno) são providos de protuberâncias sub-circulares, voltadas para o exterior, que são espaços secundários de deposição, e a que por convenção os arqueólogos se habituaram a chamar "bastiões". Sem dúvida que eles criariam um efeito cénico e uma ritmicidade estética, mas o mais importante é serem locais onde se punham coisas junto a linhas de limite, de limiar. Ridiculamente, algumas furações baixas existentes nestes "bastiões" foram interpretadas como "seteiras", quando podiam ter servido para uma multiplicidade de outros fins relacionados com as construções e com o que nelas se depunha (como por exemplo para o encaixe de vigas...). Para mim é mais importante essa característica objectiva que se observa do que a sua interpretação apressada.
Também é muito importante ver que alguns pelo menos destes sítios estão em esporões ou em plateaux alongados, e que a sua zona mais reservada (nuclear) podia estar numa extremidade (como no caso da famosa "cidadela" de Los Millares) em posição oposta às linhas de muretes com "bastiões", ou pelo menos em relação às mais importantes destas linhas, como se vê em Los Millares, Leceia ou Zambujal. Mas esses esporões, mesmo qe assentem na rocha de base e estejam mais erosionados ou as suas estruturas menos visíveis, devem ser estudados cuidadosamente. O arqueólogo tem de deixar de andar atrás do mais visível, tem de deixar de ser um antiquário de vez, para ter um método de varrimento do terreno, estando atento às mais pequenas coisas.
Ver o que toda a gente vê não é mérito nenhum; importa tentar por intuição encontrar o exemplo paradigmático (no sentido de G. Agamben) de algo que ainda não conseguimos demonstrar, de uma generalização ou síntese de que ainda estamos à procura. Há que, ao lado da dedução e da indução instaurar um procedimento "para" (Agamben - no sentido em que falamos de paradigma ou de paradoxo), um movimento no sentido de abertura à novidade que não está em lado nenhum, para ser desvelada, mas pode demonstrar a sua própria racionalidade a um olhar novo, inter-subjectivo, como quando acontece estarmos numa escavação e de repente sermos surpreendidos por uma ntuição partilhada. É por esse momento precioso, por esse encantamento, que a pesquisa científica é tão maravilhosa, e não pelo achado de objectos retumbantes e misteriosos, porque então nesse caso íamos para um país exótico recolher múmias. Quer dizer, estar atento à capacidade paradigmática, exemplar, que a realidade tem de apontar para algo que ainda não é, nem precisa de ser, universalizável. No sentido de uma para-ontologia de que fala Agamben.
Os sítios calcolíticos do nosso território são um património muito importante, como são as necrópoles megalíticas (tão estraçalhadas já) ou os castros mais tardios, para o entendimento de como se estruturou o espaço, de como o espaço e os objectos eram realidades transaccionais, quer dizer, elementos activos de um diálogo entre seres humanos.
Nenhuma sociedade humana alguma vez se constituíu sem elementos fora do humano (verdade de La Palisse), fossem eles animais, plantas, objectos diversos. A fabricação de grandes objectos arquitectónicos é um elemento básico da constituição de um fundamento (archè, radical comum a arquitectura e a arqueologia) para a vida colectiva. Não tratemos pois estes grandes dispositivos do III/II milénios de ânimo leve. É preciso é lê-los com cuidado e atenção, e tempo, que é aquilo a que praticamente não temos acesso, o que é gravíssimo, pois o tempo é o elemento básico do amadurecimento e da criatividade.
Desculpem a brutalidade das palavras, mas retirarem-nos o tempo de investigação (criando cursos apressados e obrigando as pessoas a trabalharem em empresas para poderem pagar pós-graduações que entretanto não estão a fazer dignamente porque não têm tempo) é uma perversão terrível. É uma castração. Este problema da arqueologia é muito interessante porque traz atrás de si, como sintoma, tudo o que carecemos. E o que carecemos é de mais gente competente no terreno, enquanto não são varridas do espaço público formas com que comunidades orais, que pensavam e sentiam diferentemente de nós, inscreveram nele sentidos, que desapareceram. Agora só estamos nós e a nossa responsabilidade.
*O arqueólogo, Prof. da Universidade do Porto e poeta, Vítor Oliveira Jorge, assina mensalmente uma coluna sobre Arqueologia no Blogue do JL

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