O pop português está de luto. Morreu o músico dos Sitiados e d’A Naifa. E a morte fica-lhe tão mal.
«Original por falta de comparência», assim, com a sua habitual modéstia, se dizia João Aguardela, em entrevista ao JL, aquando do lançamento do primeiro disco de A Naifa, em 2004. Agora, com a sua morte, aos 39 anos, no domingo, dia 18, na sequência de um cancro no estômago, são imensamente menos os originais que comparecem na música portuguesa.
João Aguardela foi um dos maiores iconoclastas da nossa música popular. Nunca se cansou de experimentar, de fugir aos padrões, de fazer e refazer. Até experimentou ser um dos maiores ícones do pop português, quando as massas se renderam aos encantos de Vida de Marinheiro. Mas actualmente refundia-se nos bastidores de A Naifa, a mais cortante banda portuguesa dos últimos tempos. Um divagador musical? Nem tanto. Cortando a direito, toda a música de Aguardela, nos Sitiados, Megafone, Linha da Frente ou A Naifa, responde a uma premissa. A tradição já não é o que era. Nem nunca foi. Há que reinvetá-la, sem peneiras, mas com estilo.
Aguardela reinventou-a com sucesso. Os Sitiados, a sua primeira banda, ficaram em segundo lugar no concurso do Rock Rendez-Vous de 1987, com o tema A Noite (Aqui ao luar/ perto de ti/ perto do mar…), uma das suas muitas composições. Na altura era apenas pop rock. Mas logo o som foi alterado, convertendo-se no mais bem sucedido grupo de folk-rock português. Explodiram, em 1992, quando lançaram o álbum de estreia, que incluía Vida de Marinheiro. O raparaparaparaparaparaparim entrou no ouvido de toda a gente. Seguiram-se quatro álbuns, todos nos anos 90, com sucesso decrescente, e algumas colaborações, incluindo os tributos a José Afonso, António Variações e Xutos & Pontapés. Aguardela explicou assim os Sitiados: «Penso que fizemos uma coisa semelhante ao Conjunto António Mafra. Costumo dizer que ele é o avô, o Sérgio Godinho o pai e os Sitiados os filhos.»
Na década de 2000, iniciou novas aventuras. Incluindo uma das mais ousadas experiências da música portuguesa. No Projecto Megafone criou uma amálgama de sons a partir das recolhas de música tradicional de Michel Giacometti e José Alberto Sardinha. Os quatro discos editados revelam uma peculiar leitura da tecnologia e são pérolas da música experimental.
Pelo caminho, um projecto megalómano. Um supergrupo alternativo, da geração seguinte aos Rio Grande e Resistência, com Viviane, Janelo Costa, Luís Varatojo, entre outros. Os Linha da Frente cruzaram electrónica com poesia portuguesa. Apesar do sucesso de Não posso adiar o Coração, a partir de António Ramos Rosa, foi um projecto de um disco só.
Talvez a cozedura de ideias entre Megafone e Linha da Frente explique A Naifa. O trio, com Luís Varatojo e Mitó, consolidou, numa semântica original, a linguagem que Aguardela sempre procurou. Um projecto experimental e popular, um fado que vai muito além do fado, onde se cantam, nos dois primeiros álbuns, poetas contemporâneos portugueses, de José Luís Peixoto a Adília Lopes. Aguardela optou por uma postura discreta, longe do microfone, tratando da electrónica, baixo e selecção de poemas, enquanto Luís Varatojo inventava a sua maneira de tocar guitarra portuguesa e Mitó afadistava-se.
No ano passado, lançaram Uma Inocente Inclinação para o Mal, onde revelavam uma letrista misteriosa e extraordinária, que, segundo alegaram, preferia não ser identificada. Houve até quem pensasses que se tratava do próprio Aguardela. Nada de que ele não fosse capaz. Agora, o rock soa em acordes menores. E só o sonho o fica, só ele pode ficar.
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