domingo, 5 de outubro de 2008

Siga aquele táxi!

Numa bela noite, dou por mim no meu próprio carro a percorrer as ruas de Lisboa com o Mark Turner – provavelmente o melhor saxofonista de jazz do mundo – ao meu lado. Parecia estar calmo, mas o seu olhar desfazia-se, inquieto, procurando um dos cerca de 6 mil táxis que correm frenéticos pela cidade. Na verdade, ele queria lá saber do táxi. Procurava antes o seu precioso saxofone tenor, um Selmer, e mais alguns objectos, que agora circulavam, perdidos, aos trambolhões, numa bagageira.
Momentos antes, perto do Hot Clube, na Praça da Alegria, cruzei-me por acaso com Mark Turner que tinha acabado de chegar de um concerto no Festival Avante. Aproximei-me para o cumprimentar, mas percebi que ele tinha a cabeça noutro lado. De repente, desatou a correr pela rua, esbracejando, atrás do táxi que o tinha acabado de largar. Fiquei sem perceber o que tinha acontecido até que um dos amigos que o acompanhava disse que o saxofone dele tinha ficado na bagageira. Num curto momento, Mark regressava de mãos vazias, ainda incrédulo com o que se tinha passado… Rapidamente, ligámos para todas as centrais de táxis, mas… nada… nem um sinal. Foi então que, num impulso um tanto desesperado, nos enfiámos no meu carro e seguimos em busca da agulha no palheiro. Nos primeiros minutos ninguém abriu a boca. Mas uma frase batida soou-me no pensamento, como a voz over de um filme americano: “Siga aquele táxi!” E seguimos!
Descemos a Avenida da Liberdade, passámos nos Restauradores, depois no Saldanha, e sempre que abrandávamos perto um Mercedes bege, dos antigos, como tantos outros, Mark dizia: «É este!» Mas… não era… Um pouco mais à frente, dizia outra vez: «É este!» …Mas não era, outra vez… Mark insistiu em ficar numa das praças de táxi, dizendo que ia ficar toda a noite à procura do seu saxofone, até de manhã, quando teria de apanhar o avião de volta para Nova Iorque. Prometi-lhe que iria entrar novamente em contacto com as centrais de táxis, ou com Polícia. Partiu-me o coração deixar para trás aquele grande homem, perdido, sem a sua ‘voz’, no meio da ‘minha’ cidade.
Alguns dias se passaram e nem um sinal do saxofone… Não me saia da cabeça aquele episódio. Lembrava-me muitas vezes de uma conversa que tivemos quando fomos feitos loucos no meu carro, atrás de um táxi qualquer, em que Mark dizia estar disposto a arranjar um detective para lhe encontrar o saxofone… Ri-me, mas ele não parecia estar a brincar. A situação era mais grave do que poderia parecer. Saxofones, há muitos! Mas aquele não era um simples instrumento. Era aquele com que tinha apurado a sua técnica, aquele que se tinha tornado uma íntima projecção da sua voz.
Ainda estava de férias e resolvi pôr mãos à obra. Lisboa não é assim tão grande, pensei. E o saxofone anda por aí algures, provavelmente à espera de ser vendido por uma bagatela. Melhor do que vendê-lo por poucos euros, seria devolvê-lo ao dono, por uma boa recompensa. Era a melhor solução à vista e Mark estava disposto a dar até 2000 dólares para o recuperar.
Numa das vezes que falei com um grupo de taxistas, pedindo que passassem a palavra sobre o assunto do saxofone perdido e da recompensa, cuja quantia não foi revelada, houve um deles que me deu uma preciosa dica: Pela hora e sítio onde o taxista tinha apanhado Mark Turner – perto do Galeto, pelas 2 e 30 da noite - provavelmente dirigia-se para o Bingo. Foi exactamente aí que deixei a informação, contanto com a ajuda da amável recepcionista que me prometeu passar a palavra e o meu contacto aos taxistas que costumam frequentar a sala de jogo.
Já lá iam duas semanas que o saxofone se tinha perdido. Deitei no lixo todos os papelinhos que faltavam distribuir com a informação da recompensa e o meu contacto. Num sábado, estava muito bem a passear em Belém, quando o meu telemóvel tocou. Do outro lado a voz de uma mulher perguntava-me se era de uma residencial em Lisboa. Disse que não, que era engano, mas a senhora não parecia convencida. Desliguei. Um minuto depois, o mesmo número anónimo insistia. A mesma voz parecia ter mudado de estratégia. Estava a ficar um pouco aborrecida com aquela conversa, quando de repente ouço uma palavra mágica: saxofone! Era a mulher do taxista que me estava a ligar e queria combinar um encontro comigo. Tinha o instrumento e frisou o quanto ele deveria ser valioso… «Minha senhora nós damos-lhe uma recompensa», disse-lhe. A conversa simplificou-se logo e o encontro foi marcado.
A jogada no bingo, onde o taxista recebeu a informação, tinha sido certeira. E tudo aconteceu num grande golpe de sorte porque justamente nesse dia, Mark Turner estava a tocar em Leiria. Assim que pôde, viajou para Lisboa e, na manhã seguinte, estávamos os dois no Galeto, incrédulos com toda esta história, à espera do taxista e esposa, que não faziam ideia de quão valiosa era o total da recompensa. Ainda esperámos meia hora com algum nervosismo até que os outros dois se anunciaram. Corremos lá para fora, onde estava estacionado o táxi. A bagageira abria-se como por um acto de magia e Mark agarrou-se à caixa do saxofone que estava lá dentro. Tirou-a e abriu-a para se certificar de que estava tudo em ordem. Lá estava o Selmer a reluzir, são e salvo… Foi então que a autêntica ‘peixeirada’ começou… A mulher do taxista não parava de dizer que coitado do marido que trabalha de noite e tem de dormir de dia… o que ele tinha corrido por causa do saxofone... o taxista observava cada gesto e ainda guardava outros objectos na bagageira que pertenciam a Mark. Este, calmamente, tirou 300 dólares da carteira e passou-os ao taxista, sem hesitar. Por sua vez, o taxista dizia: «O quê? Isto não é nada!» Enquanto a mulher continuava: «Ai, o que o meu marido correu por causa disto… éramos para ir à embaixada, mas…» (Pois… mas não foram…) Nisto, Mark abre novamente a carteira e passa mais 200 dólares ao taxista que se cala. Olhamos um para o outro e… «Vamos sair daqui», disse-lhe. Afastámo-nos com os objectos recuperados – Mark não largava o saxofone – e deixámos todo o burburinho para trás (incluindo um iphone que não foi devolvido).
Novamente no meu carro, lá íamos contentes com o desfecho da história. Mark Turner perguntava-me, com agradecimento, o que poderia fazer por mim. Pensei: «Só quero que tenhas o teu saxofone para continuares a tocar como o fazes…». Mas não resisti a pedir também uma recompensa. Ficou prometido que terei entrada livre em todos os seus concertos…!

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