quarta-feira, 7 de maio de 2008

Sr. José, Sr. Silva

Quando eu era puto, na nossa rua o Sr. José era o Sr. José da Mercearia, que era do Benfica, tinha um filho que era o Rogério, que era meu colega de carteira na escola da D. Alice, que... E o Sr. Silva era o meu pai, que tinha um filho que era eu, que era o Zé Manel, que durante 68 anos Zé Manel continuou a ser na declinação de amigos & afectos. E esse filho do Sr. Silva, esse filho que era eu, só Silva foi uma vez, e essa vez foi na Guerra, por onde andou camuflado de alferes miliciano Silva, atirador especial de Infantaria, «pronto, meu capitão», «pronto, meu coronel», «pronto, meu general», «pronto, ares condicionados, gabinetes, cervejolas, mandantes e cagarolas», pronto eu, carne no mato para canhão, sozinho com o meu pelotão. Mas…
Mas, porém, todavia, contudo, quem houvera de dizer, safou-se afinal o Silva, alferes que era eu, e, quando da infantaria da tropa transitou para a infantaria do jornalismo (há 40 anos já; como é possível!!!), ganhou até um nome artístico: Rodrigues da Silva. Santo-e-senha com que, entre muita outra malta, sobre neurologias, psiquiatrias e vozes, entrevistou o Lobo Antunes (João), o Sampaio (Daniel), o Andrea (Mário), qualquer deles naquele hospital. Pelo qual – al, al, al, – entrou sempre pela porta grande, esquerda alta, para, horas depois, pela baixíssima esquerda, pequeníssima porta, sair, porque, enfim, mesmo alheia e de passagem, a doença faz-nos mingar a alma ou coisa assim.
Até que um dia és tu que mingas, não apenas na coisa assim da alma, mas também no coiso já muito assado do corpo, que, com gozo e respectivo proveito, sempre deste ao manifesto. E és tu que mingas, porque há aquele nódulo que… Que a radiografia detectou, a TAC confirmou, a endoscopia revelou, a biopsia te coisou, e o Zé Manel para os mais íntimos, o Rodrigues da Silva no palco das artes & ofícios, de repente ­– consoante a recepcionista, a enfermeira, o pneumologista –, passou a ser o Sr. José. Ou o Sr. Silva.
E tu sentes que o filho da puta do cancro te minga até a identidade. E que, por detrás do que passaste a ser, porque assim te passaram a chamar, ele te reduziu a um nódulo de ti mesmo. E só então – Sr. José, Sr. Silva – é que percebes que começaste a desnascer…

7 comentários:

Paula Coelho disse...

Já tinha sentido a falta das suas críticas de cinema e lamento que a razão seja doença.
Espero sinceramente que dê a "volta por cima".

Paula Coelho

carlos disse...

Sinto o mesmo.
Coragem camarada.
Um abraço.

miss print disse...

que belas palavras.
à falta de melhor, coragem. muita coragem.
um abraço.

NM disse...

Meu Caro,
Os mails chegavam devolvidos mas ninguém me explicava. Agora sei porquê.
Deixo-te o meu abraço. Tens de lutar contra isso. Com a ideia de que não mereces e o vais vencer. Fiz o mesmo há já 20 anos. Estou aqui ainda. Tu também vais ficar.
Continua a trabalhar. Não pares. Resiste. NM

Isabel disse...

É com tristeza que vos digo que o Zè Manel morreu esta tarde!
Meu vizinho e amigo desde sempre...para ele o abraço que lhe dei!
Isabel

Zugo disse...

Grande Professor... O Único com a coragem suficiente para dar uma palmada nas secretárias com uma força tal que até a mesa saltava... e dizia-nos em tom de conselho.. ".. voces estão completamente fodidos no vosso futuro.." e garanto-vos que não falhou por mto!!!

Dora disse...

Estava agora a tentar enviar mais um email ao Rodrigues da Silva e mais uma vez voltou para trás...Pela segunda vez estranhei não conseguir enviar mngs ao melhor professor que tive até hoje.
Para além de um Homem com um coração enorme era também um professor exemplar que toda a gente deveria ter tido. Aprendi tanto com ele! Li o comentário do Zugo e sublinho o que disse. Ele era mesmo assim, espontâneo e sincero. Fui priviligiada por o ter conhecido!!!