quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Duchamp revisitado


Provavelmente, nunca um artista foi tão mal entendido. E se dissermos que esse artista se chama Marcel Duchamp, e que o «urinol» é o mal entendido, talvez se perceba porquê.
Chamaram-lhe de tudo. A impostura do século, o fim da arte, o triunfo da mediocridade, a destruição dos valores tradicionais. E, na verdade, pouco se disse sobre o alcance da ousadia duchampiana, ao submeter a concurso, em 1917, no salão da Sociedade dos Artistas Independentes de Nova Iorque, o seu readymade Fountain. Ainda para mais fazendo Duchamp parte do júri.
Nove décadas depois, avalia-se o impacto da obra e o seu significado pela interpretação que artistas e críticos cristalizaram ao longo do século XX; olha-se às consequências do seu acto, mas esquece-se do acto em si, em particular as circunstâncias e o contexto da Europa e da América dos inícios da I Guerra Mundial.


É a esse exercício, ao mesmo tempo histórico e crítico, que se dedica David Santos, em Marcel Duchamp e os readymade, uma edição da Assírio e Alvim (91 pp, 12 euros). O director do Museu do Neo-Realismo, de Vila Franca de Xira, filia os readymade de Duchamp na tradição Romântica do século XIX. Numa época de racionalismo e de progresso, os simbolistas defendiam «o poder significacional do inconsciente, ou da desrazão». É a altura da poesia automática, do nonsense, das livres associações, do inconsciente, do acaso. Estratégias artísticas que os movimentos dadá e surrealista sublimaram na poesia, no teatro, na pintura e também na cidadania.
Neste sentido, Marcel Duchamp desempenha um papel fulcral. Não só pela sua contribuição para o dadaísmo, mas também pelas reflexões teóricas em torno do lugar do artista, da obra de arte e do espectador na Arte Contemporânea.
Muito antes do conceptualismo se definir como modelo dominante, Duchamp questiona-se sobre o valor da produção em série, em sintonia com o ensaio seminal de Benjamin, A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. E afirma, acima de qualquer outro valor, a primazia da ideia sobre o fazer, através da tríade «sujeito, objecto e assinatura».
Como nota David Santos, cada obra passa a produzir «as regras do seu próprio jogo, bem como a medida da sua aceitação». É o «observador quem faz a obra», como sublinha Duchamp no seu ensaio Acto Criativo, de 1953. No génio e no embuste.




0 comentários: