sábado, 23 de maio de 2009

Os cúmplices de Maria João Quadros

Entrevista com Tiago Torres da Silva

Tiago Torres da Silva é, neste momento, um dos mais destacados letristas da música portuguesa (e não só), com particular ênfase no fado. Foi ele que concebeu Fado Mulato, o disco em que Maria João Quadros canta fados composto por músicos brasileiros. O Blogue de Letras entrevista-o, uma semana antes do concerto da fadista, no dia 28, no Coliseu de Lisboa

Pediste a uma série de compositores brasileiros para escrever fados, que é uma música genuinamente portuguesa e lisboeta… De que forma é que os compositores brasileiros transformam o fado?

Na realidade, os compositores brasileiros só conhecem o fado de matriz amaliana e, mais do que o conhecerem a fundo, intuem um sentimento que está associado a esse fado que a Amália levou ao Brasil com tanto sucesso. O que me parece que todos estes compositores fizeram foi compor com a riqueza harmónica da MPB associando o seu próprio estilo de composição a essa coisa nostálgica que eles reconhecem no fado. Depois, eu escrevi letras impregnadas de fado, com muitas referências ao mundo fadista e isso, associado a muitas conversas que fomos tendo ao longo dos meses de composição, ajudou a situá-los numa coisa mais próxima do Fado. Foi muito curioso ver a reacção que eles tiveram ao ouvir a maria João Quadros a cantar os temas novos, porque no Brasil jamais tinham escutado uma emissão de voz como aquela que nada tem a ver com o que eles conhecem do fado.


Que surpresas estão preparadas para os concertos?

Os concertos traçam um caminho que nasce nos retiros fadistas de Lisboa, atravessam o continente africano e aportam no Brasil sem, por isso, negarem o parentesco que têm com, por exemplo, o tango. Nestes diversos lugares que vai "percorrendo", a Maria João Quadros vai encontrando cúmplices das mais variadas origens e faixas estárias. É assim que, ao palco do Coliseu, subirão o Quinteto Lusotango, o Tito Paris e o António Pinto Basto para além de... ah!, mas isso é surpresa! E que surpresa!... Quem é aficionado de fado e não estiver no Coliseu no dia 28, vai ficar a roer-se durante uns bons tempos! Podes ter a certeza!


Gravaste um disco com uma portuguesa a cantar fados brasileiros e agora vai sair um outro, da Maria Berasarte, em que escreves letras para uma «fadista» basca, que canta fado em espanhol sem guitarra portuguesa. Queres alargar as fronteiras? Tornar o fado universal? Será que tudo isto é fado?

Como sabes, o Brasil está no meu caminho há muito tempo e de tanto escrever para cantores portugueses e brasileiros, confesso que já não sei bem onde me situar. Apaixona-me o rigor poético do fado, mas sinto-me muito feliz com a liberdade que a MPB me permite. Encontrei um pequeno espaço na MPB que me dá muita alegria, porque acho que os maiores letristas da língua portuguesa se encontram no Brasil. A lista é extensíssima e encabeçada pelo Chico Buarque, mas tem também Paulo César Pinheiro, Luiz Tatit, Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, etc. Fui eu que quis o Brasil no meu caminho. Trabalhei para isso e, agora, ao ouvir o que escrevo nas vozes da Maria Bethânia, do Ney Matogrosso, da Alcione, da Elba Ramalho, do Seu Jorge, da Zélia Duncan, da Olivia Byington, entre muitos outros, sei que me tornei naquilo que sempre quis ser - um escritor de uma língua mais do que um escritor de um lugar.
O disco da Maria Berasarte foi um acontecimento. Nada fiz para que acontecesse, mas a Maria, que é uma cantora extraordinária, apaixonou-se pelo Fado e veio a Portugal com o intuito de encontrar os parceiros certos para esta viagem. Quando me encontrou, pediu-me que escrevesse letras em português para ela e fui eu que lhe propus que, se era para cantar fado, tinha de cantar com as palavras que aprendeu desde criança. Eu sou um letrista de vozes, para vozes! Tento sempre escrever como se fosse o cantor que vai interpretar aquelas palavras. Por isso, fez-me sentido escrever em castelhano e foi um desafio muito grande, porque tive de comprar dicionários de rimas em espanhol, de expressões... durante meses a fio só li livros em castelhano e, por fim, escrevi aquelas letras de fados tradicionais, o que não é nada directo, porque a poesia popular portuguesa (e, por isso, quase todos os fados tradicionais) é maioritariamente em redondilha maior. E as sete sílabas não calham bem ao espanhol... tive de as fazer caber... mas acho que isto foi um episódio que eu tenho muita vontade de repetir... mas nada mais que isso...por exemplo, gostava imenso de fazer um disco com fados tradicionais em francês... e até sei quem seria a cantora...
Quanto à questão de se estas experiências são fado ou não, confesso que não me interessa muito. Eu faço o que tenho de fazer, Existe alguma coisa inominável que me impele a fazer as coisas. Por isso, do ponto de vista da intimidade, claro que isto tudo é fado. Do ponto de vista da catalogação pública, talvez nada disto seja fado. Pelo menos, para os puristas, não é, de certeza!

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