quarta-feira, 13 de maio de 2009

O que dói às aves, de Alice Vieira

O que dói às aves - 16

E chega um dia em que reconhecemos
finalmente
a injustiça das palavras -
exactamente as mesmas
para quem vai e para quem fica

um dia
em que não há mais passado para contar
nem mais futuro para viver

apenas uma velha cantiga de embalar
uma casa desaparecida
e este limbo ocasional
onde o corpo
espera que anoiteça

Relendo os gregos - 4

E tu perguntaste
o que de novo eu sofria
e por que de novo te chamava
e que coisas eu queria que acontecessem
no meu desvairado coração

Safo

Acenderam-se todas as luzes cruas da cidade
e as palavras acordaram mais velhas e com sabor
a camas desfeitas
e a línguas subitamente agrestes
que se encadeavam na tua boca em estranhas falas
como se tudo tivesse chegado ali sem mácula
e fosse agora preciso ensinares-me
a escrever junho com as ferozes sílabas
do que não conseguias perdoar

deixo que saias lentamente dos meus ombros
e espero que tudo o que era teu saia contigo

desabitaste de ti a minha vida
e em teu lugar há apenas
um translúcido rasto de poeira que
a brisa há-de arrastar

Aquele que o meu coração ama - 1

Aquele que o meu coração ama
ergueu-se do meu leito e nele esqueceu
as repetidas promessas de um regresso
em que aos meus olhos ensinaria
a única maneira de esconder
o prenúncio de invisíveis desertos

aquele que o meu coração ama
afogou em noites de leite e mel
o rasto dos oásis que
teciam a sede do desejo no meu peito
e bebeu neles as horas de um destino que
me acenava de muito longe

aquele que o meu coração ama
partiu às cegasaisem descobrir
as húmidas palavras que se espalham
à sombra dos ciprestes
contando os minutos que faltam
para a vertigem do corpo onde o aguardo

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