O Poço
Mas é aí que tudo acontece,
nos lugares aonde nunca fomos -
o ar ergue a ponte pênsil,
elevada meio tom acima da voz,
acima das frases que se precipitam
e a si chamam as atenções gerais,
membros da confraria sem o sabermos
na pausa fumegante, aérea:
consoante surdas, explosivas,
viajam no ar e na água,
abruptamente caem,
o centro de interesse,
no poço do elevador ou da mina,
para sempre desfocado.
A inquilina em Motzstrasse
Um desígnio: escapar às malhas do real,
enredar na sua vidas imaginárias,
ídolos, crenças, tabus, ordenar
os nomes onde se perde, em elipses,
nas palavras das baladas e canções,
o rasto aos amigos alegóricos;
dispô-los de maneira a regurgitarem
a página de segredos, mitos,
pseudónimos, máscaras,
construir uma biographia literaria
onde a vida verídica, a vénus
oriental & o andrógino verdadeiro
renunciam à vida oficial,
a vida que não passa de um ensaio
entre gentes, lutos, leitos, parábolas,
trocar, títere e personagem
vestida de roupas masculinas,
a escura vida em que desposou
este e aquele, o Bárbaro, o Nibelungo,
por um reino de poder e domínio
no Egipto ou no Eufrates.
A hora nua e os dias breves
de Janeiro verão seguir,
com o séquito de sombras,
na barca de passagem, o rei,
o imperador invisível de Tebas.
Se não tardar o mestre das horas.
O empregado
dann in Berlin als ems'ger Prosaist
vivi então em Berlim como diligente prosador]
Não tinha morada fixa
nem cartão de visita.
Nada na sua vida,
à parte a crispação nervosa
e as hesitações da escrita,
parece digno de menção.
A caligrafia mínima
e uma particular disposição
para a tristeza não constam
da magra folha de serviços.
Sem carta de rota,
sem identidade conhecida,
foi evitando as vias principais,
abrindo com os passos um trilho
neste sudário: passou traves, cancelas,
foi, duende, estranho fantasma,
ver tinir a luz das cidades na distância.
Tendo desistido de tudo
(família, relações, as simples
futilidades da conversa),
o único prazer era este: evadir-se,
ser como o vadio onde a desventura
como o pedaço de carvão incandescente
brilha, é um sol interior que arde
e ilumina a casa sem portas nem janelas
que é o ser - ir, só, melancólico, absorto,
até ao limite da resistência passiva,
até à capitulação final.
Vestiu o casaco de lã e hoje
deixou na neve escrita a vida
tão gratuita como uma pantomima.
Do novo livro de poemas de Paulo Teixeira, O Anel do Poço, uma edição da Caminho.
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