rua serpa pinto, n.º 6. 2.º esq.
O corredor, a alcatifa, a mesa
da cozinha, a disposição dos
quartos, a cor dos azulejos,
o branco das paredes, a vista
para o muro das traseiras.
As casas que habitámos
ainda nos habitam.
formiga
«Pai, anda cá», diz a minha filha.
Pela parede branca sobe uma formiga,
minúscula, muito lenta, obstinada.
A minha filha encolhe o corpo
pequenino para olhar. Não sei se é
a primeira vez que vê uma formiga;
mas é, parece-me, a primeira vez
que se apercebe da enorme diferença
de escala que a separa do insecto.
A minha filha acompanha a subida
heróica da formiga pela parede
branca, vira-se para mim, sorri.
É nesse espaço subitamente tenso,
criado entre a alegria infantil da
descoberta e o esforço irracional
da formiga, que nasce o poema,
mesmo se eu já desisti dele para
limpar o ranho que a minha filha,
absorta, deixou chegar até à boca.
segundo soneto nocturno
Dizias: a poesia não nos protege
nem salva, é só um consolo inútil.
As folhas rasgadas ardiam melhor,
o fogo contorcia as estrofes, brilho
negro o destas cinzas. Dizias: foi
ontem que o anjo me veio arrancar
os olhos, amanhã virá à procura do
coração. Na tua voz, restos de vidro
moído, metal gasto, ferrugem. Lá
em cima as estrelas continuavam
a cintilar, indiferentes. Nenhuma
catástrofe que nos aconteça ficará
registada nos sismógrafos. Dizias:
afinal não há anjo, são só palavras.
Do novo livro de poemas de José Mário Silva, Luz Indecisa, uma edição da Oceanos.
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