quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Transplantes: Vila Nova de Foz Côa, há 5.000 anos, hoje

Por Vítor Oliveira Jorge*

Para a Susana...

Quando penso no que poderiam pensar e sentir as pessoas que "fizeram e refizeram" Castelo Velho e Castanheiro do Vento há 5.000, 4000 anos, como me aconteceu ainda hoje de manhã a acordar, e tenho a sensação de que era outra humanidade com pressupostos totalmente diferentes dos nossos, sinto uma espécie de vertigem. Por breves segundos afigura-se-me intuitivamente o que poderia ter sido, mas logo se esvai. É muito difícil meter isso em texto depois, porque pôr em texto é evidentemente uma encenação dessa vertigem que já se desvaneceu. Foi como quando tive consciência (c. dos meus 15 anos) do absurdo da pretensão de querermos acreditar na existência de Deus: tive a vertigem do nosso nada, da minha absoluta desqualificação, ou seja, de que a vida tem de ser vivida no luto do sentido, da perda abissal do princípio ordenador, e que de certo modo a beleza da vida é esse desamparo trágico. Sem perceber (sentir) isso fica-se sempre na menoridade. Mas para um puto de 15 anos é uma vertigem sentir/perceber isso como num relâmpago insofismável. É quando começa a deixar de ser miúdo, ou seja, quando começa simbolicamente a ser pai dos pais, a libertar-se deles, a ver a sua menoridade a olho nu, a perceber-se sozinho no batel em que se safou do grande barco protector, e a sentir-se no alto mar, exposto e entregue unicamente à sua capacidade própria de sobreviver, ou seja, à iminência constante da morte, à sua instanciação permanente.Para voltar aos tipos de Castelo Velho e de Castanheiro do Vento.
Aqueles indivíduos manipulavam uma série de coisas que iam buscar/trabalhar aqui e ali, uma série de materiais, como troncos, plantas em geral, sedimentos, afloramentos, animais, líquidos, enfim, todo o meio-ambiente. E faziam nele, com esses elementos, uma série de TRANSPLANTES. É esta a palavra-chave. Por exemplo, Castelo Velho, na sua frente sul, a do esporão, era um espécie de pedreira que esteve sempre a ser trabalhada, como uma escultura. Mas todas estas palavras nos enganam, porque chamar "pedreira" é um funcionalismo simples e falar de "escultura" uma esteticização abusiva. Fazia-se transplantes de coisas de um lado para o outro, e em sítios como Castelo do Velho e Castanheiro do Vento vemos ainda concentrado o "resto" (o "resultado" alterado pelo tempo) dessa sequência por certo interminável de transplantes. Lascar a rocha xistosa de base para, com esses pedaços daí saídos, partidos em diferentes formas, compor e recompor um espaço, através da sua reaplicação (transplante) em muretes, embasamentos, etc. Certamente porque para além das suas propriedades "geológicas" (nossa visão) cada "pedra" tinha, conotadas, propriedades outras que nós hoje também identificamos (mas são as nossas, de hoje): peso, textura, cor, forma de se deixar talhar, etc, etc. O mesmo com o arvoredo, com os ramos que serviam para estacas, ou postes, ou armações de coberturas: as conotações que damos a um tronco mais ou menos grosso, a uma vara ou fibra que se mantém em tensão com outras para fazer um cesto, a ramos longos e elásticos que podiam entrecruzar-se no tecto de uma "cabana", etc. Transplantes, transformações de elementos usados depois noutros compostos, noutras composições: essa a tarefa humana.
Mas as suas conotações de cada "momento", ou seja, as suas relações com o conjunto ideológico/explicativo do mundo, suscitam-nos a tal vertigem da irrecuperabidade. Irrecuperabilidade do que nunca existiu, porque nunca houve decerto um sentido fixo, bem definido, para cada coisa, em cada época o que se verbalizava ou fazia dependia de um acordo inconsciente entre os intervenientes, ou seja, na reprodução, reafirmação ou enfraquecimento desse sistema de transformações. Ora, um pensamento actual que passe pela ideia de inconsciente (tão presente desde a psicanálise, tão recuperado pelo estruturalismo e seus "avatares" posteriores, que ainda estamos a digerir) dilui de imediato a ideia de um sentido para qualquer coisa, presente ou passada. Dissolve, subverte a transparência do signo. Há uma barreira entre significante e significado, como disse Lacan, muito para além de uma simples convencionalidade de relação como queria Saussure. O que significa, como acentuam Labarthe e Nancy ("Le Titre de la Lettre. Une Lecture de Lacan", Paris, Galilée, 1990) uma subversão da linguística saussureana. Estamos entregues à deriva infinita dos espelhos. Assunto a desenvolver...
Voltando ao passado: ou seja, a esse modo de se pensar, aqui no presente, é claro (não somos miúdos em máquinas do tempo), a que convencionadamente chamamos passado. O que aqueles tipos faziam era transplantar, tirar daqui, pôr ali, unir e desunir uma série de "qualidades", trabalhando sempre (como nós hoje, pois partimos do princípio de que eram humanos como nós, não extra-terrestres) com os princípios da metáfora e a metonímia, quer dizer com a ambiguidade e mutiplicidade dos sentidos, quer ao nível consciente, quer inconsciente. PORTANTO O SEU PRESENTE NUNCA SE LHES MOSTRAVA A ELES MESMOS COMO PRESENTE COMPREENSÍVEL, TAL COMO O NOSSO PRESENTE, QUE PENSAMOS O PRESENTE DELES, JAMAIS SE NOS REPRESENTA COMO COMPREENSÍVEL, TOTALMENTE ABRAÇÁVEL POR UMA TEORIA. Há que ultrapassar uma filosofia da representação, que é uma teologia, uma vontade de recuperar a unidade do sentido. Isso é um empreendimento muito difícil.As pessoas manipulavam o mundo, transplantando partes dele de um lado para outro, partindo, colando, unificando, demolindo, em suma, transformando, mas não para chegar a uma "obra acabada" (a arquitectura pronta), mas pelo próprio acto de arquitectar. Arquitectar (o que só podia ser em conjunto) significa, pressupõe, o estabelecimento prévio de uma certa confluência de intenções. Mas não há um momento original em que uma série de tipos antes isolados (como se fossem seres contemporâneos, indivíduos segundo a nossa maneira de ver/sentir) contratam entre si, por exemplo numa clareira da sociabilização: "pessoal, temos de nos organizar, temos de começar a manipular isto de uma maneira concertada." Não, esse momento primordial (e depois repetido em cada grande suposta fase, forma de reiterar o primordial) da constituição do grupo a partir de indivíduos é mítico, nós já nascemos num grupo e como produto de um "projecto" já em execução, quer dizer, cada um de nós vem ao mundo tarde e a más horas, e parte dele (morre) bem antes do que supunha (do que queria, um dos nossos enigmas é que mesmo caquéticos e a sofrer nunca admitimos a morte), não temos mão nisto, não sabemos quem somos, etc. O inconsciente é o essencial de nós, o embraiador dos desejos, das crenças, das convicções, e portanto é preciso pensar a chamada "pré-história" incorporando a psicanálise (Freud, pois, mas também Lacan, aquele que se adentrou mais, filosoficamente falando, em Freud, para trazer o seu legado para a filosofia - e por isso é que se não pode já pensar um sem o outro) senão não se sai do realismo ingénuo da ciência corrente.Transplantes de água para com a terra moldar a argila, misturada com desengordurantes, e "fabricá-la" em formas multivariadas. Transplantes de pedra. Transplantes de ossos humanos ou de animais. Transplantes de artefactos de todo o tipo, incluindo muitos intencionalmente transformados (lâminas de machados embotadas, moinhos manuais partidos, uma imensidão de coisas "alteradas"). Manipulação em suma do mundo, do ambiente, em que o papel da crença é crucial, da crença em que o que se está a fazer em comum tem um alcance que vai para além de uma qualquer conceptualização nossa (ou deles), de uma qualquer representação, porque grande parte desse elo de união é inconsciente.É aqui que Pré-história e psicanálise se unem, e que se torna evidente que um sítio arqueológico é tão bom para pensar o humano como um livro de filosofia ou a experiência do divã: são formas de concentrar a atenção, de nos separarmos do senso comum dos outros, de nos sociabilizarmos (entre aqueles que se interessam por estas coisas, quer dizer, o enigma do ser humano) e de criarmos uma rede de controvérsias, de transferências, de transplantes. Entre nós, sozinhos, com o cosmos à frente, na sua beleza infinita, sem o ruído de deuses nem de fadas: resplandecendo apenas pelo encantamento do nosso olhar.A beleza do mundo é a beleza do nosso olhar.
O espanto do passado está a acontecer, aqui e agora, mais uma vez, e sempre.


*O arqueólogo, Prof. da Universidade do Porto e poeta, Vítor Oliveira Jorge, assina mensalmente uma coluna sobre Arqueologia bo Blogue do JL






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