quarta-feira, 9 de julho de 2008

O amor é uma deusa

Os Amores de Astrée e Céladon, de Eric Rohmer


ESTREIA AMANHÃ, 17

Ninfas, druidas e pastores. Já não se fazem filmes assim. Aliás, nunca se fizeram. É por isso que Os Amores de Astrée e Céladon, de Eric Rohmer, está condenado a ser mal compreendido. E é mal compreendido por a mensagem ser demasiado simples. O filme é um hino à pureza do amor. Um amor divino, que não é Vénus nem Afrodite. Quando o amor é verdadeiro, o ser amado, nem que seja uma pastora, torna-se Deus. Não é sempre assim?
No Festival de Toronto, o filme não foi recebido com apupos porque os canadianos são demasiado educados. Mas nas votações do público, dominavam as cruzes em frente ao um e ao zero. Compreende-se bem. Os amores de Astrée e Celadon é um autêntico OVNI. Facilmente se odeia. Mas também se pode amar.
Rohmer adaptou um romance de Honoré d’Urfé, um escritor francês do final do século XVI e princípio do século XVII. Numa espécie de antecipação ao neo-classicismo, D’Urfé descreveu uma Gália Imaginária, cheia de mitos, lendas e divindades, com referências à mitologia celta (e indirectamente à grega e romana), onde a influência dos clássicos é claríssima. A ideia de adaptar D’Urfé ao cinema era de Pierre Zucca, cineasta falecido em 1995. Rohmer repescou-a com a sobriedade que a experiência lhe confere, mas também, possivelmente, com a consciência de que, aos 88 anos, depois de ter dado tanto ao cinema, já se pode dar ao luxo de fazer o que bem lhe apetecer. E é fantástico que, para o bem ou para o mal, esta reverência do cinema francês consiga surpreender tudo e todos.
O maior risco do projecto era cair no ridículo. Pior ainda, num ridículo pretensioso. Afinal trata-se da adaptação de um romance pastoril, com pastores bem-falantes trajados à moda do século XVII, que vivem num limbo onde se cruzam com ninfas e druidas e que, em vez de se guerrearem ao estilo do Senhor dos Anéis, tecem, em registo teatral, as mais eruditas considerações sobre o amor. Há uma toada naive, em que os anacronismos são assumidos, ao longo de todo o filme. Na verdade, ao exemplo de alguns clássicos gregos, não há qualquer complexidade na trama que impeça a sua compreensão. O seu maior obstáculo é a forma anacrónica de contar a história. Ou seja, a maioria dos espectadores não tem os códigos para compreender, as razões do capricho de Celadon ou por que motivo este não é reconhecido quando se disfarça de mulher. O realizador, por vezes, chega a pisar essa linha, que separa o idílico do risível.
Apesar de dar a ideia de ser um filme do tempo em que ainda não existiam filmes, torna-se, curiosamente, uma obra explicitamente queer, o que, afinal, até lhe concede traços de modernidade. A personagem principal, um rapaz com traços femininos, aparece-nos como um travesti, e essa sua condição abre, súbita e surpreendentemente, a parte final do filme para um universo de insinuações gay e lésbicas.
O filme não só expõe algumas reflexões sobre a pureza ou a essência do amor, como levanta questões teológicas, na desconstrução do politeísmo até à idolatria do ser amado, com a edificação de um templo para Astrea. Como que admitindo, se Deus é amor, Deus é a mulher amada.
Os amores de Astrée e Celdon pode não ser uma obra-prima tardia de Rohmer, mas é um filme refrescante na sua extemporaneidade, que merece ser visto com olhos limpos de preconceitos e abertos a novas velhas maneiras de contar histórias. Afinal, esta coisa do amor não é de hoje nem de ontem.

OS AMORES DE ASTRÉE E CÉLADON, de Eric Rohmer, com Andy Gillet, Stéphanie Crayencour, Cécile Cassel, Véronique Reymond. 109 min. Cinemas King



0 comentários: