segunda-feira, 14 de abril de 2008

O abismo da escrita

Foto de Jean-Luc Bertini

Surpreendeu-me o último livro de Enrique Vila-Matas, Exploradores do Abismo, agora traduzido para português pela Teorema (294 pp, 18 euros). Não pela temática, mas pela abordagem. Depois da entrevista que lhe fiz no ano passado, durante as Correntes d’Escritas, o tema ficou-me na cabeça, como um assunto que também me dissesse respeito. Como se eu próprio, ao correr dos meses até à publicação da obra em Portugal, também tivesse escrito sobre estes Exploradores do Abismo.
A estranheza da leitura foi exactamente essa, o confronto entre o que eu imaginava serem «pessoas normais que, ao verem-se abeirando-se do precipício fatal, adoptam a posição do expedicionário e sondam o plausível horizonte, indagando o que pode haver fora daqui, ou no mais além dos nossos limites (p. 11)» e que o Vila-Matas escreveu.
Bem sei que a leitura diz sempre mais de quem lê do que de quem escreve, mas na minha cabeça, talvez influenciado pela excessiva ficção científica da adolescência, concebia pessoas em busca do que se esconde para lado do limite conhecido, para lá do nada, como o próprio escritor me sugeria na entrevista. Recordei, entre 2.ª circulares e auto-estradas, entre cafés e refeições rápidas, entre textos e leituras, a intensidade das palavras do Blade Runner e a forma como o meu horizonte de possibilidades sempre se desenhou para lá dos «shoulder of Orion». E se efectivamente essa exploração espacial está presente num dos contos deste livro – Amei Bo, um dos mais bonitos – o abismo de que nos fala Vila-Matas é o do quotidiano. Aquele abismo que, como uma fenda, surge das dúvidas, inquietações, medos e memórias do dia-a-dia.
Mas quando digo que o último livro de Vila-Matas me surpreendeu, não estou a afirmar que me desiludiu. Antes pelo contrário. À medida que fui avançando na leitura, e esquecendo o que eu nunca escrevi, senti-me preso a estes vazios que se instalam na vida dos personagens, que buscam outros caminhos: roubando frases num autocarro, vendo-se perante uma plateia desabitada, quebrando a monotonia de um casal ou recusando o destino traçado. São episódios como estes, aparentemente banais, que Vila-Matas consegue sublimar, tornando-os reflexões literárias sobre pontos sem retorno, como o que o próprio escritor viveu, em 2006, quando teve um colapso físico. De resto, a ideia de doença e de recuperação está sempre presente.
Há nesta prosa desenvolta uma tentativa de fundir vida e arte, um desejo que o próprio Vila-Matas admitia em Paris nunca se acaba, o relato dos seus tempos de juventude e de aprendiz de escritor, nas águas furtadas de Marguerite Duras: «Vida e arte têm a tendência para acabar por se misturarem e se entrelaçarem para compor uma imagem única, cómica e trágica ao mesmo tempo, uma imagem singular como a que compõem touro e toureiro nessas grandes faenas que nunca esquecemos». O melhor exemplo desta tendência é Porque ela não lho pediu, em que se narra a colaboração entre Vila-Matas e Sophie Calle. À semelhança do que fizera com Paul Auster, a artista francesa ter-lhe-ia pedido um conto para o transportar para a vida real. Mas nunca se chega a perceber os contornos dessa relação. Se de facto houve um convite, ou se pelo contrário foi dissimulado pela literatura. Porém, qualquer que seja o desfecho, o que se percebe é que, a existir um abismo, ele será inevitavelmente o da escrita. Porque, como diz um tio a Vila-Matas, junto à serra de Ronda, só «as obras de arte, escassas, dão conteúdo intelectual ao vazio».

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