quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Não mata, mas mói


É da conveniência da quadra e o espírito natalício impõe uma palavra de amor e bondade. Acudiu-me à memória aquela miúda, mais silhueta que voz, mais sombra que gente, paredes meias com a noite já cerrada, encostada ao escuro, na escapatória do shopping, saco de plástico na mão, daqueles que levam milhares de eras a corromper-se, para mal do planeta. Do saco saíam meias que a miúda vendia por meia dúzia de euros. Meias daquelas que as almas mais caridosas arregimentam para aquecer os pés, que a alma é mais renitente, dos sem-abrigo. E meias bizarras, daquelas com dedos e riscas, de que as tias fazem presente para desgraça de alguns sapatinhos. Comprei uma data delas, para ver se a miúda ia para casa. Bem podia ser a Menina dos Fósforos ou qualquer fábula dessas a que o cinema dá glamour e lágrimas, que sempre adornam o Natal. Mas o neo-realismo não é só dos livros, nem das artes. Nunca calcei tais meias. Não que duvidasse da bondade da malha, mas porque nunca me ajeitei a enfiar aqueles dedos de viscose, ou lá o que era. Já da bondade, mesmo natalícia, de um país que sustenta essa realidade sempre duvidei.
E que bondade poderá ser a de um país que tão-pouco ama os seus melhores. Acode-me à ideia – e não virá ao caso nem à quadra – que um dos melhores, o cineasta Pedro Costa, acaba de ter mais um prémio lá fora, desta vez o da Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles, pelo seu filme Juventude em Marcha, que em Portugal não teve mais que umas parcas semanas de cartaz, porque o mercado não perdoa. Nem o sistema de produção e de distribuição ou a insuficiência dele: o cineasta teve ele próprio de tratar desde o carimbar nos bilhetes para uma exibição na Amadora, até aos envelopes ou não sei que plásticos para proteger as cópias ou coisa parecida. Claro que a crítica não podia ser mais elogiosa. É um dos melhores, e um dos mais amados. Mas ressoam-me ainda no ouvido as suas palavras que então me pareceram ingratas: «Tanto amor, mata», disse, lembrando Bob Dylan. Assistir-lhe-á meia razão: O amor não matará, mas este país mói.

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